Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Rap no inferno, bossa nova no céu

Enquanto livro compila as casas do Capeta, João Gilberto ganha filme no Japão

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Heavy metal na treva de Guantánamo; o som celestial de João Gilberto no Japão.

É um inferno. Séculos de pesquisas incontestáveis, evidências científicas, empenho racional e raciocínio dialético. Foi um esforço gigante, mas o grosso da humanidade —a humanidade grossa— segue entalado em alucinações sadomasoquistas. O inferno não vai embora.

É por isso que se publicou há pouco "The Book of Hell" (Penguin, 282 págs.), a aplaudida antologia sobre o reino subterrâneo de sofrimento infindável, o presídio de pecadores gerenciado por um anjo caído —o Canhoto, o Capeta, o Cão que cai como um corpo morto cai.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Com textos traduzidos do grego e do latim, o livro foi organizado por Scott G. Bruce. Ele é um professor americano que pagou sua formação universitária trabalhando —muito apropriadamente— como coveiro.

Sua definição do inferno é sucinta: o lugar da religião cristã onde se dá a punição, póstuma e eterna, das pessoas de vida má. Ele assombra o sono e o sonho de milhões, há mais de 2.000 anos, porque virou a "mais poderosa e persuasiva construção criada pela imaginação ocidental".

Concílios e doutores da Igreja, de Agostinho a Tomás de Aquino, fincaram os fundamentos teológicos do inferno. Um poeta, porém, o popularizou —o toscano que Nietzsche chamou de "a hiena que versifica nas sepulturas": Dante.

Sem a "Divina Comédia" não haveria o inferno tal e qual o conhecemos. Dante deu consistência à infausta fossa que, na metáfora famosa, fica "lá onde o Sol se cala", na qual o verbo sonoro se refere a um astro visual.

Lá estão os nove ciclos, que começam no Limbo dos sem batismo. Mais para o fundo da cratera surgem os avarentos, os iracundos, os preguiçosos, os fraudadores. Imersos em piche fervente até o pescoço ficam os da laia de Cabral, Cunha e Palocci: os políticos corruptos.

O derradeiro ciclo, o do lago congelado que parece vidro, é reservado aos piores entre os piores, os traidores. Primeiro, os traidores de parentes. Depois, os de hóspedes e amigos. Por fim, na boca de Lúcifer, ficam os Judas, os Brutus, os Temer —os traidores de seus benfeitores.

O inferno dantesco povoa a pintura do Renascimento ao barroco, de Michelangelo a Rubens. O seu breu ecoa em filmes de zumbi e fantasias apocalípticas do tipo "Guerra Mundial Z" e "Mad Max".

Segundo Scott G. Bruce, o inferno se tornou metáfora de tormento e sofrimento, mas não porque a ciência e a razão tenha corroído os seus alicerces, enterrados em superstições. O inferno segue firme e forte porque a realidade é infernal. Talvez esteja até piorando.

Ao tratar do século 19, "The Book of Hell" alude à miséria e degradação provocadas pela industrialização, descritas por Engels em "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra". No século seguinte, o inferno que o livro apresenta é mais horripilante: Treblinka.

Os nazistas mataram 900 mil judeus no campo de concentração na Polônia. Acompanhando o Exército Vermelho, Vasily Grossman foi o primeiro jornalista que entrou nele. Escreveu "O Inferno de Treblinka", cujo tema é a morte industrializada.

O professor Bruce transcreve então "Fogo no Sol", que trata de um inferno novo, imediato e ilimitado. Yoshitaka Kawamoto descreve a explosão da bomba atômica na cidade na qual morava, Hiroshima. Tinha 13 anos.

A bomba inaugurou a era nuclear, na qual a humanidade pode eliminar a vida na Terra. Não é com essa idade que acaba "The Book of Hell". O último capítulo aborda a prisão americana de Guantánamo. Num limbo jurídico, ela encarcera suspeitos que jamais serão julgados.

Ali se admite privação do sono; afogamento; confinamento solitário; escuridão total. O mais contraintuitivo dos suplícios, talvez o mais cruel, é a música.

Presos são submetidos à música o tempo todo ao longo de meses, numa altura no limite do suportável. Ela desorienta e traumatiza —a pessoa confessa qualquer coisa. Eminem ("Kim") e Queen ("We Are the Champions") estão na playlist. Rap e heavy metal são particularmente dolorosos.

 

Na próxima sexta (8), estreará em cinemas de Tóquio, Osaka e Nagoya o filme com shows que João Gilberto fez no Japão há 13 anos. O artista canta e toca durante 90 minutos para milhares de japoneses extasiados. Nunca foi mostrado com tanta nitidez.

Interpreta clássicos da bossa nova e tesouros como "Pica-Pau", de Ari Barroso, e "Treze de Ouro", de Herivelto Martins e Marino Pinto. Serão lançadas 5.000 cópias em Blu-ray. Depois, DVDs. Tudo isso só no Japão —onde começou a era do inferno nuclear. Mas a música ainda pode chegar ao Brasil e nos levar ao paraíso.

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