Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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A 'Quinta' inconformada

Na grande sinfonia de Mahler, as formas de um mundo encrencado

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Na estreia da “Quinta Sinfonia” de Gustav Mahler, em 1901, um resenhista escreveu que seu compositor e regente —“um tirano, um mestre das formas colossais, um César”— vagueou “por trilhas de montanhas altas e remotas, e às vezes parecia perdido”, mas foi  “aplaudido calorosamente”.

Outra testemunha daquela noite em Viena disse: “É um trabalho exaustivo, cujas divagações são difíceis de entender; estilisticamente, é um quebra-cabeça. Apesar de detalhes bonitos, tende mais a consternar do que a elevar”. Já os aplausos, “bem moderados, se mesclaram à oposição veemente”.

O próprio Mahler admitiu que a reação à estreia da “Quinta” foi mitigada. Numa carta, escreveu: “De todo modo, sinto que ela causou uma enorme impressão”. Essas reverberações, de espanto com o quebra-cabeça, foram reativadas na última quarta (2), na Sala São Paulo.

Ilustração do edifício em tons de azul
Bruna Barros/Folhapress

A diferença foram os aplausos —não houve dúvidas acerca da sua veemência. Dirigida por Kent Nagano, à frente da Orquestra Sinfônica de Montréal, a “Quinta Sinfonia” arrebatou palmas unânimes e eloquentes, sendo aclamada aos gritos por um grupo bem nutrido.

Na véspera de seus 120 anos, a grande sinfonia foi assimilada, senão pelo povo, ao menos pelo elegante público da música erudita —aquele que, civilizadamente, cruza um cordão de PMs para entrar na Sala São Paulo. E não só ali. No ano passado, Claudio Cruz e a Orquestra Jovem do Estado gravaram um CD com a “Quinta”.

A assimilação foi lenta. Seu trecho mais conhecido, o melancólico “Adagietto” —que ressoa em “Morte em Veneza”, de Visconti— foi apresentado a sós durante décadas. Em Londres, ele estreou em 1909; e apenas 36 anos depois a íntegra da sinfonia foi tocada na cidade.

A assimilação não se completou porque a peça de Mahler continua estranha. Ela abre com ecos do início de outra “Quinta Sinfonia”, a de Beethoven, a mais conhecida de toda a história da música: tchan-tchan-tchan-tchaaaaan! Só que a alusão é feita por um meigo e solitário trompete.

Poderia ser uma homenagem ou uma ironia, mas a paródia não é levada adiante. Em vez disso, segue-se uma “Marcha Fúnebre”, que serviria para expor andamento e o tema da sinfonia: o passo cadenciado rumo à morte. 

Isso não ocorre nem nas partes nem no todo, contudo.

De chofre, a marcha é interrompida duas vezes por temas secundários. A arquitetura da “Quinta”, por sua vez, vai de trás para frente, do início funéreo a um final feérico. O caminho que percorre é conturbado. A resistência ao esquemático, ao convencional, é contínua.

Quase não há acumulação na “Quinta”. Um tema não desemboca naquilo que, pela tradição, o ouvinte aguardaria. Passagens calmas tampouco servem de ponto de apoio para uma aceleração. A sinfonia resulta inconformada, encrencada como o mundo.

Na segunda parte, por exemplo, valsas vienenses e canções folclóricas são bombardeadas por signos da modernidade, como a bricolagem e as oposições bruscas. A relação entre fósseis da tradição e audácia contemporânea é tensa, e é dela que a música extrai sua energia.

É o que diz Adorno, no seu afã de solapar o garboso cordão da PM que vigia a Cracocivilização: “O caráter inautêntico da linguagem musical transforma-se em expressão do conteúdo”.

Diz mais, o solerte marxista cultural: “Na música de Mahler, a incipiente impotência do indivíduo torna-se consciente de si. Diante da desproporção entre a força individual e a enorme força da sociedade, o indivíduo descobre sua própria nulidade”.

A nulidade do indivíduo não aniquila sua subjetividade. É o que ocorre no lento “Adagietto”, que se estendeu por 13 minutos na regência de Kent Nagano.

Segundo seus biógrafos, Mahler o compôs aos 40 anos, sob o impacto da paixão por Alma, née Schindler, com quem se casou pouco depois. 

Paixão expressa também num pequeno poema para ela:

“O quanto te amo, meu sol!
Não posso dizer em palavras
Meu desejo e meu amor.”

Banal? Sem dúvida. Mas, ao servirem de linha melódica para os violinos do “Adagietto”, os versos se transmutam numa música que diz o impossível às palavras: a força formidável e perecível de Eros, impulsor de obras-primas.

Toda subjetividade participa da vida em torno, da sociedade. No fim da “Quinta”, então, Mahler sai de si e musica o mal estar do mundo. É uma borrasca de sons à beira da selvageria, de falsos finais que se frustram.

Um século e tanto depois da sua estreia, fica fácil constatar: a apoteose terrível da “Quinta” anteviu o que vida social veio a ser.

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