Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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A indústria de produtos Proust lança discos com as músicas que ele amava

Escritor francês, de 'À Procura do Tempo Perdido', era entusiasta da tecnologia que aproximava os ouvintes da música

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O violinista Gaston Poulet estava de pijama. Eram 23h de uma noite do inverno de 1916 quando a campainha tocou. Abriu a porta de seu apartamento em Paris e deu de cara com um desconhecido todo encapotado, branco feito leite, de olhos persas.

“Eu sou Marcel Proust”, anunciou a figura. Era ele mesmo. Mas ele era quase ninguém, uma eminência iminente. Publicara apenas o primeiro tomo de “À Procura do Tempo Perdido”, que foi logo eclipsado pela guerra mundial, e raramente saía de casa.

Pintura mostra homem jovem branco usando roupa formal azul escuro com detalhe branco no peito
Retrato do escritor Marcel Proust feito em 1895 por Jacques-Émile Blanche - Reprodução

A celebridade ali era Poulet, líder de um quarteto de cordas de primeira. “Estou atormentado pelo desejo de ouvi-lo tocar o quarteto de César Franck”, prosseguiu Proust.

O violinista se comoveu. Três táxis foram buscar os outros membros do quarteto e seguiram todos para o apê do escritor. Ele se reclinou no sofá, fechou os olhos e escutou os 50 minutos da peça de Franck. Aí os abriu, espantou o êxtase —e pediu que a tocassem de novo.

Proust era entusiasta da tecnologia que aproximava os ouvintes da música. Assinava o “théâtrophone”, serviço que punha microfones no palco e transmitia o som pelo telefone. Ouviu assim, online e em casa, “Pélleas e Mélisande”, de Debussy, e a “Sinfonia Pastoral”, de Beethoven. Tinha uma pianola, engenhoca que tocava peças gravadas em rolos de papel.

Preferia escutá-las vivo. Ficou freguês e contratou várias vezes o quarteto de Poulet, mas sua formação musical foi feita nos salões da alta roda. Para retribuir os convites de duquesas, locomotivas e
cocotes, certa vez organizou um concerto no hotel Ritz —que transformara num puxadinho da sua casa.

Escolheu a dedo o repertório da noitada: Wagner, Chopin, Schumann. O carro-chefe foi a “Sonata para Violino e Piano nº 1”, de Fauré. No auge da empolgação, escrevera ao compositor uma carta dizendo que conhecia sua música tão bem que poderia escrever 300 páginas a respeito.

O programa do recital no Ritz, com pequenas mudanças, está em “Proust, Le Concert Retrouvé” (Harmonia Mundi), numa versão para violino e piano. Compositores da mesma extração formam o plantel de “Music from Proust’s Salons” (Bis), agora para piano e violoncelo.

O saldo da investida sonora da indústria de produtos Proust é contraditório. Há por certo o ranço da fetichização. O que importa para ela não é “À Procura”, mas a bizarria do autor —e tome livros sobre suas roupas, viagens, michês etc.

Em “Le Concert Retrouvé”, os instrumentos são tão lustrados que adquirirem uma pátina, por assim dizer, proustiana: o violino de Swarte é um Stradivarius de 1708; o piano de Williencourt, um Érard de 1891. Mas o chiquê é o de quem ergue o mindinho para tomar uma xícara de café.

Dito isso, os discos permitem ver com olhos novos —e estupefatos— a passagem da música francesa do romantismo para o modernismo, do século 19 para o 20. Até o bendito piano Érard parece mesmo ter um som art déco, vai entender.

Eles dão uma ideia do universo sonoro em que Proust estava imerso. Mas o som que ele analisa no livro é outra coisa. É vã a procura do Santo Graal da “pequena frase de Vinteuil”: ela é literatura, e não música.

Vinteuil é um professor de piano de província que se tornou titã do modernismo. Sua pequena frase é primeiro o hino nacional do amor de Swann e Odette. Em seguida, o canto fúnebre do afeto que virou indiferença. Mais adiante, migra para um septeto e adquire vida própria.

Ao contrário da “madeleine”, o bolinho que se dissolve na memória do narrador e some para sempre, o trecho de Vinteuil se transmuta e retorna de quando em quando ao romance. Ele marca a passagem e a morte inapelável do tempo, e a sua redenção pela arte que renasce em outros ouvintes.

Os discos não têm nada disso, apesar de trazerem obras de autores que teriam influenciado a pequena frase: Fauré, Saint-Saëns e Franck. É um desserviço à trinca, e a Proust, forçar a identificação entre uma coisa e outra. Eles têm vida autônoma.

A surpresa dos discos é Reynaldo Hahn, cujas canções aparecem em ambos. Ele foi o primeiro amante de Proust, amigo da vida inteira e estava à sua cabeceira quando morreu. Autor de operetas, fez um sucesso tremendo na Paris da belle époque.

Sempre foi tido por um autor menor, mas agora está sendo reavaliado. Penumbrosas, suas canções submergem em estados d’alma melancólicos. Radicais no seu alheamento, elas retêm cacos e climas da subjetividade que não se dobram aos ditames da sociedade.

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