Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Revisitar 'O Morro dos Ventos Uivantes' é uma ideia sempre atraente

Talvez devido ao gosto um tanto deteriorado, a história de Emily Brontë continua rondando a memória

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A primeira leitura de “O Morro dos Ventos Uivantes” foi há pouco mais de 50 anos. O romance de Emily Brontë, publicado pela Coleção Saraiva, provocou estupor. Mais pela sua esquisitice do que pelo encanto.

Ele se passa entre o século 18 e o 19 e tem um enredo febril. Exaltados e desagradáveis, os personagens se engalfinham num arranca-rabo perpétuo. Sua gritaria ecoa num ambiente ficcional sórdido e incompreensível. Ao menos para um pacato adolescente paulistano.

Que voltou a seu altar de semideuses da Saraiva —aos capa e espada de Amédée Achard; às moçoilas tolas de José de Alencar; à galhardia de Erckmann-Chatrian; à filha do inca de Menotti del Picchia; à onipotência do todo-poderoso Alexandre Dumas.

Talvez devido ao gosto um tanto deteriorado, “O Morro dos Ventos Uivantes” continuou a rondar a memória. Por que o romance não é social nem psicológico? Por que o amor entre Catherine e Heathcliff é puro ódio? Que diabo de livro é esse? Até porque a palavra que ele mais repete é, justamente, diabo.

Quadro com desenho de mulher
A escritora inglesa Emily Brontë em retrato - Reprodução

Foi com agrado, pois, que veio a notícia que se dedicaria um semestre da faculdade ao romance de Emily Brontë —que começava a ser desbancado do cânone britânico por “Jane Eyre”, da sua irmã Charlotte. Foi uma leitura como deve ser: no original, aplicada e metódica.

Dedicou-se um bom tempo ao vocabulário da época e à paisagem do norte da Inglaterra: charnecas, penetraliun, urzais, pointers. O professor, escocês, tinha prazer em depreciar o modo de falar da gente de Yorkshire, que achava lastimável.

Ele destrinchou também os xingamentos, abundantes: vá se danar, bruxa atrevida; bezerro dos infernos; sua mãe é uma vagabunda perversa; porca ordinária. E esse biju de delicadeza: “levante, sua idiota desgraçada, antes que a espanque até a morte”.

Isoladas, as ofensas são grotescas. No romance, servem de preâmbulo para a violência física. Os fortes batem nos fracos, os homens nas mulheres, os adultos nas crianças, os humanos nos animais.
E Heathcliff, o macho alfa, desce o braço em todos.

Quem mais se aproxima de Heathcliff na literatura inglesa é o Ricardo 3º, de Shakespeare, aprendeu-se no curso. “O Morro dos Ventos Uivantes” está à margem dos romances da época —de Jane Austen a Thackeray, de George Eliot a Henry James, de Dickens a Thomas Hardy.

Como eram os anos 1970, analisou-se sua forma intrincada e a meia dúzia de narradores. Mas não se notou que, discretamente, todos eles são inconfiáveis. Nada se disse de classes nem de gêneros, apesar de a maioria da sala de aula ser de meninas. Entende-se: não pegava bem falar de luta de classes na ditadura, e o feminismo era incipiente.

Saiu agora uma edição de “O Morro dos Ventos Uivantes” (Penguin-Companhia, 458 págs.) com uma ótima tradução de Julia Romeu e ensaios esclarecedores de Pauline Nestor e Cíntia Shwantes —o que não deve ser um acaso porque o feminismo anda em alta.

Foi irresistível a tentação de revisitar, revisitando-se, o romance. Além do quê, é óbvio aproximar o nefando Heathcliff de você-sabe-quem. Não vale a pena, porém, deixar que o vira-lata do Planalto defeque das alturas ululantes da arte de Emily Brontë.

“O Morro dos Ventos Uivantes” se passa em Wuthering Heights e Thrushcross Grange, propriedades rurais numa área inóspita. Na primeira vivem os Earnshaw e na outra os Linton. Para eles, a Inglaterra inexiste. Mal saem dali.

Até que o patriarca dos Earnshaw vai a Liverpool e volta com um menino escuro como um cigano, Heathcliff, que ele adota. Catherine, sua filha, se afeiçoa ao estrangeiro. Irmãos tortos, eles se descabelam naquilo que antigamente se chamava de paixão romântica, e hoje de amor fusional.

Literalmente fusional: “Eu sou Heathcliff!”, brada Catherine. Mas ela se casa com um Linton loiro e enfermiço do clã vizinho. Mestiço e pobre, Heathcliff some. Não se sabe aonde foi, como se educou, enriqueceu e encarnou o mal. Ele volta para se vingar.

Os incestos e a necrofilia fizeram a fama do romance. São os elementos que levam à interpretação dominante: ele trataria das tensões entre natureza e cultura, impulsos e civilização.

Mas estão lá, evidentes, as correntes dominantes da propriedade e do patriarcalismo, que correm no leito de uma longa tradição de coerção física e psicológica.

É como diz Heathcliff: “O tirano tritura seus escravos, e eles não se voltam contra ele, esmagam quem está abaixo”.

“O Morro dos Ventos Uivantes” levou meio século para chegar ao presente nacional.

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