Em matéria de frase inicial de um livro, a de "Livre" é matadora: "Nunca questionei o significado da liberdade até o dia em que abracei Stálin".
Lea Ypi tinha 11 anos na tarde chuvosa de dezembro de 1990 em que enlaçou a perna do bondoso tio de "bigode amigável".
O relato que se segue em "Livre: Ficando Adulta no Fim da História" (Todavia, 303 págs.) não perde o pique, está à altura da abertura. Lea Ypi conta como ela e a Albânia passaram de uma ditadura a outra: a de uma sucursal do stalinismo à do capital.
A Albânia é um paiseco nos Balcãs de tamanho e população equivalentes à de Alagoas. Até 1991, foi uma das "repúblicas populares" surgidas no pós-Guerra. Seu autocrata, Enver Hoxha, a quem Lea Ypi também chamava de tio, era mais stalinista que Stálin.
Quando a União Soviética enterrou o culto a Stálin, em 1956, a Albânia aninhou-se no colo de Mao. E assim que a China adotou reformas liberais, nos anos 1970, rompeu com Pequim. Seu aliado passou a ser o PC do B, que fazia a guerrilha do Araguaia.
O Stálin que "sorria com os olhos" quando Lea Ypi o abraçou morrera. Mas encarnava o espírito do mundo que viria, apontava para o radioso porvir igualitário. Por isso, ao olhar para cima, a menina viu com espanto que o povo cortara a cabeça da estátua de Stálin.
"Livre" é um relato pessoal e político. Com graça, fuça o lixo do passado varrido para baixo do tapete da história. Por isso ganhou uma penca de prêmios e foi eleito o livro do ano na calota norte. Mas que ninguém se engane: como escancara impasses do presente, é triste.
Primeiro Lea Ypi repassa os horrores da ditadura albanesa e, por extensão, do socialismo real —que os porta-vozes do capital dizem ser o único possível, pois a exploração da maioria pela minoria é natural e, logo, desejável.
Além do socialismo, o inferno era real. Só que a autora se recusa a listar o enésimo rol das misérias dos privados da sacrossanta liberdade. Seus pais escondiam-lhe a realidade passada e presente para que não se enrascasse na escola.
A menina Lea não sabia que seu bisavô tinha sido um primeiro-ministro fascista. Nem que sua família fora vítima de torturas, prisões e assassinatos. Nem que saber francês lhe causaria problemas com a divindade suprema, "o Partido" do tio Enver.
Na Albânia arredia ao mundo, latas de Coca-Cola causavam brigas entre vizinhos porque eram enfeites de decoração. Como só uns minguados turistas usavam protetor solar, seu cheiro enojava os nativos. Uma mulher lavou o cabelo com detergente por achar que era xampu.
Aí, como dominós, desabaram as repúblicas soviéticas do Leste Europeu. A Albânia, apesar de blindada a toda e qualquer influência externa, de preparada para destroçar os contrarrevolucionários caiu de podre. Lea não sabia o que pensar.
Seu pai, que só acreditava em revolucionários que morreram em defesa do socialismo —Rosa Luxemburgo, Trótski, Che—, virou gerente de um porto privatizado. Sua mãe aderiu ao levante e tornou-se líder de um partido da oposição liberal.
Começa a segunda parte de "Livre". O Banco Mundial, o FMI e economistas desembarcam em Tirana para propagandear a boa nova liberal: reformas estruturais, privatização, democracia, liberdade de ir e vir. A Albânia tinha de ser "como a Europa", diziam.
Os evangelistas alertaram que haveria um período de transição. Dito e feito. Houve desemprego em massa; sucateamento da indústria; destruição de toda e qualquer proteção estatal. Não importava. Era preciso combater a corrupção e o protecionismo; poupar e investir.
O período de transição se eternizou. Livres para ir e vir, desempregados albaneses buscaram emprego na Europa e foram recebidos a bala. O pai de Lea Ypi demitiu milhares no porto. Sua mãe passou de líder liberal a faxineira na Itália. Sua melhor amiga tornou-se prostituta.
Os albaneses bem que pouparam e investiram. Foram ludibriados por corruptos que gozavam do protecionismo liberal. O calote de um esquema Ponzi, uma pirâmide de aplicações financeiras fictícias, fez com que uma guerra civil engolfasse a Albânia. A liberdade era uma lástima.
Lea Ypi não iguala socialismo e capitalismo. Sabe que isso é burrice, ou má-fé, de quem defende que a história acabou e estamos condenados à iniquidade.
Também não tem uma receita para tirar a humanidade da selvageria social e pô-la no rumo de um futuro sem exploração. Procura uma saída. Por isso escreveu "Livre" e ensina marxismo na London School of Economics.
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