Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti

Escritora mostra como Albânia foi da ditadura stalinista à do liberalismo

Em 'Livre', Lea Ypi fuça o lixo do passado e escancara impasses do presente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em matéria de frase inicial de um livro, a de "Livre" é matadora: "Nunca questionei o significado da liberdade até o dia em que abracei Stálin".

Lea Ypi tinha 11 anos na tarde chuvosa de dezembro de 1990 em que enlaçou a perna do bondoso tio de "bigode amigável".

O relato que se segue em "Livre: Ficando Adulta no Fim da História" (Todavia, 303 págs.) não perde o pique, está à altura da abertura. Lea Ypi conta como ela e a Albânia passaram de uma ditadura a outra: a de uma sucursal do stalinismo à do capital.

A Albânia é um paiseco nos Balcãs de tamanho e população equivalentes à de Alagoas. Até 1991, foi uma das "repúblicas populares" surgidas no pós-Guerra. Seu autocrata, Enver Hoxha, a quem Lea Ypi também chamava de tio, era mais stalinista que Stálin.

Localização da Albânia
Localização da Albânia - www1.folha.uol.com.br/mapas/

Quando a União Soviética enterrou o culto a Stálin, em 1956, a Albânia aninhou-se no colo de Mao. E assim que a China adotou reformas liberais, nos anos 1970, rompeu com Pequim. Seu aliado passou a ser o PC do B, que fazia a guerrilha do Araguaia.

O Stálin que "sorria com os olhos" quando Lea Ypi o abraçou morrera. Mas encarnava o espírito do mundo que viria, apontava para o radioso porvir igualitário. Por isso, ao olhar para cima, a menina viu com espanto que o povo cortara a cabeça da estátua de Stálin.

"Livre" é um relato pessoal e político. Com graça, fuça o lixo do passado varrido para baixo do tapete da história. Por isso ganhou uma penca de prêmios e foi eleito o livro do ano na calota norte. Mas que ninguém se engane: como escancara impasses do presente, é triste.

Primeiro Lea Ypi repassa os horrores da ditadura albanesa e, por extensão, do socialismo real —que os porta-vozes do capital dizem ser o único possível, pois a exploração da maioria pela minoria é natural e, logo, desejável.

Ao centro da imagem uma mulher de cabelos claros mira fixamente para esquerda, ela está com uma camisa azul e tem em média 45 anos. O fundo da imagem é rosa claro com as bordas avermelhadas.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 12 de maio de 2023 - Bruna Barros

Além do socialismo, o inferno era real. Só que a autora se recusa a listar o enésimo rol das misérias dos privados da sacrossanta liberdade. Seus pais escondiam-lhe a realidade passada e presente para que não se enrascasse na escola.

A menina Lea não sabia que seu bisavô tinha sido um primeiro-ministro fascista. Nem que sua família fora vítima de torturas, prisões e assassinatos. Nem que saber francês lhe causaria problemas com a divindade suprema, "o Partido" do tio Enver.

Na Albânia arredia ao mundo, latas de Coca-Cola causavam brigas entre vizinhos porque eram enfeites de decoração. Como só uns minguados turistas usavam protetor solar, seu cheiro enojava os nativos. Uma mulher lavou o cabelo com detergente por achar que era xampu.

Aí, como dominós, desabaram as repúblicas soviéticas do Leste Europeu. A Albânia, apesar de blindada a toda e qualquer influência externa, de preparada para destroçar os contrarrevolucionários caiu de podre. Lea não sabia o que pensar.

Seu pai, que só acreditava em revolucionários que morreram em defesa do socialismo —Rosa Luxemburgo, Trótski, Che—, virou gerente de um porto privatizado. Sua mãe aderiu ao levante e tornou-se líder de um partido da oposição liberal.

Começa a segunda parte de "Livre". O Banco Mundial, o FMI e economistas desembarcam em Tirana para propagandear a boa nova liberal: reformas estruturais, privatização, democracia, liberdade de ir e vir. A Albânia tinha de ser "como a Europa", diziam.

Os evangelistas alertaram que haveria um período de transição. Dito e feito. Houve desemprego em massa; sucateamento da indústria; destruição de toda e qualquer proteção estatal. Não importava. Era preciso combater a corrupção e o protecionismo; poupar e investir.

Capa de 'Livre', da escritora albanesa Lea Ypi
Capa de 'Livre', da escritora albanesa Lea Ypi - Reprodução

O período de transição se eternizou. Livres para ir e vir, desempregados albaneses buscaram emprego na Europa e foram recebidos a bala. O pai de Lea Ypi demitiu milhares no porto. Sua mãe passou de líder liberal a faxineira na Itália. Sua melhor amiga tornou-se prostituta.

Os albaneses bem que pouparam e investiram. Foram ludibriados por corruptos que gozavam do protecionismo liberal. O calote de um esquema Ponzi, uma pirâmide de aplicações financeiras fictícias, fez com que uma guerra civil engolfasse a Albânia. A liberdade era uma lástima.

Lea Ypi não iguala socialismo e capitalismo. Sabe que isso é burrice, ou má-fé, de quem defende que a história acabou e estamos condenados à iniquidade.

Também não tem uma receita para tirar a humanidade da selvageria social e pô-la no rumo de um futuro sem exploração. Procura uma saída. Por isso escreveu "Livre" e ensina marxismo na London School of Economics.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.