Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Diário da Ligúria

Cabras em Drego, sorvete em Gênova, crianças em La Spezia, sereia em Porto Venere

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2 de outubro. Cresce na Ligúria, e na Itália toda, o agroturismo. Você se hospeda numa chácara com plantações e bichos. Come o que a gente do lugar cozinha e passeia pela região. É mais barato que hotel e se vê algo do modo de vida dos nativos.

La Ciapeleta é um agroturismo em Ventimiglia cujo dono atende pelo apelido de Danito Bonito. Ao comentar os dias claros e quentes neste outono, ele informa: "Não chove mais na Itália".

A seca permanente, explica, não se deve ao aquecimento global; é provocada pelos rastros de fumaça branca dos aviões. Intencionalmente, homens maus empesteiam o ar com toxinas. Em matéria de teoria conspiratória, essa é inusitada.

3 de outubro. Em Dolceaqua, uma placa no castelo de Andrea Doria festeja os feitos daquele que foi um mercenário à la Arthur Lira. Feitos que lhe valeram, óbvio, o ódio dos contemporâneos.

O teatro em Sanremo onde acontece o Festival da Canção Italiana é suntuoso. Nos anos 1960, cantantes italianos eram populares no Brasil: Rita Pavone, Gigliola Cinquetti, Peppino di Capri. Felizmente, a moda passou.

4 de outubro. Fontana dell'Olmo fica em Molini di Triora, um agroturismo encarapitado nos píncaros de Drego. É tão alto que dá para ver a Córsega, lá longe. A casinha é de pedra. A luz é de energia solar. A última fonte secou e água tem que ser levada de camionete. O único barulho é o das sinetas no pescoço das cabras.

Ao centro da imagem uma sereia de cauda vermelha mergulha em um mar azul circundado por montanhas em tons de cinza claro. No canto inferior esquerdo as formas em cima da montanha sugerem um castelo.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 27 de outubro de 2023 - Bruna Barros/Folhapress

Os donos, Silvia e Matteo, moram no vale. Ele cozinha no fogão a lenha e cuida das cabras. Ela administra o negócio. Seus filhos, uma menina e um menino, aprendem na escola pública a língua occitana, ameaçada de extinção, que se espalha do sul da Espanha ao norte da Itália. Trabalham de sol a sol.

A neblina tênue vai e volta durante a caminhada pelos Alpes da Ligúria. Durante muitos quilômetros, não se cruza com ninguém. Mato, rochas, árvores, céu, nuvens que de súbito surgem e logo somem. Um mundo sem a espécie humana. Ainda.

5 de outubro. Ao contrário de Cristóvão Colombo, eu deixaria a América em paz, não sairia nunca de Gênova. Moraria num palácio na Via Garibaldi e iria todos os dias à Profumo, a única sorveteria lígure do guia Gambero Rosso com três cones.

Incrível a Itália não ter resolvido dois problemas primários: carros e lixo. As ruas são estreitas e os automóveis, cada vez maiores. Roda-se uma hora até achar uma vaga –ilegal, na calçada. Italianos contam que a coleta do lixo é gerida pela máfia. A sujeira impera.

7 de Outubro. O centro de La Spezia é uma animação só na noite de sábado. Crianças brincam, adolescentes namoram, velhos papeiam na praça, moças checam o celular. Nada a ver com o centro de São Paulo: zumbis jogados no chão, ladrões à cata de incautos, noias com parangolés, policiais trocam uma ideia com traficantes.

8 de outubro. Topa-se em Cinque Terre com o jamais visto: o enxame turístico. Zilhões de pessoas sôfregas congestionam as cinco vilas onde, ao todo, moram 5.000 pessoas. Apenas em estádios, no final de campeonatos, há tanta gente junta. São vagalhões de pedestres, a autonomia individual reduzida a zero, a desesperada vontade de não estar ali.

Há que se fugir para as montanhas, para as trilhas entre Riomaggiore, Manarola, Corniglia, Vernazza e Monterosso al Mare. São suaves terraços com vinhas, escarpas pedregosas, o Mediterrâneo verde-azulado ao fundo. O sol é de matar.

Aqui em frente, no golfo de La Spezia, Shelley se afogou. O cadáver do poeta de 29 anos foi achado dez dias depois. É difícil traduzi-lo. "A alegria, uma vez perdida, é dor", por exemplo, é um verso flácido. Já o original é uma pedrada: "Joy, once lost, is pain".

10 de outubro. Porto Venere está quase vazia, Shelley seja louvado. Ele conviveu aqui com Byron, que tinha um pé deformado, mancava, preferia nadar a andar. Era o proverbial peixe na água: cruzou o Tejo, o Helesponto e nadou 25 quilômetros de Porto Venere a Lerici.

Por essas e outras –fazer poesia sardônica, gastar a rodo, ser promíscuo, lutar pela independência da Grécia– foi a primeira celebridade europeia. Hoje, poucos o imitam e ninguém nada do castelo de Porto Venere à Gruta de Byron, batizada em sua homenagem. Mas eis que uma alva sereia cruza o mar divino, Lina.

12 de outubro. Antes de voltar, visito em Roma a igreja de Sant’Andrea al Quirinale. Seu traçado interior –oval– é idêntico ao da Praça de São Pedro. A praça se abre para todos; a igreja se fecha para poucos. São ambas obras de Bernini.

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