Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Incerteza percorre livro de Jean-Claude Bernardet

Historietas repetidas à exaustão se distanciam da vivência e ganham vida própria

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Jean-Claude Bernardet tem Aids e câncer na próstata. Toma um balde de remédios e sente dores constantes. É um crítico de cinema que enxerga tão mal que não pode mais ver filmes. Um escritor que escreve pouco porque, com as mãos abatidas por achaques neurológicos, dispõe só de um dedo para digitar.

Com 87 anos, é um alvo óbvio de gatunos, que o jogaram no chão várias vezes —e a osteoporose faz com que seus ossos esfarelem como giz. É um sobrevivente que quer viver do jeito que der e vier.

Ele publicou agora "Wet Mácula", pela Companhia das Letras, um livro tão esquisito quanto seu título —o nome da doença incurável que degenera as retinas e cega.

É um livro no qual Bernardet revisa a vida, mas sabe que não a enxerga com nitidez pois tem os olhos cansados. Além do quê, desconfia das imagens imaculadas do passado, acha que se chega à verdade por meio de artifícios, arte. "Um texto coerente simula sua verdade", escreve.

Heloisa Jahn, editora e tradutora muito querida em São Paulo, teve a ideia do livro. Ela o sugeriu porque, nos últimos anos, Bernardet foi roteirista, colaborador e ator em vários filmes. Engatava um no outro.

Uma hora, faltou-lhe o que fazer. Perguntou a Heloisa, sua amiga há 35 anos: e agora, qual é o projeto? Ela expôs o plano. Gravariam longas entrevistas biográficas. Com base nelas, o crítico contaria o que fez, sentiu e pensou ao longo da vida.

Nos meios culturais, todo mundo tem um projeto, também chamado de projetinho. Em 99% das vezes, o esquema dá chabu. O deles prosperou porque foram disciplinados. Estavam com as entrevistas feitas quando se deu a tragédia: Heloisa morreu.

No centro da imagem de fundo preto há o rosto de um homem idoso que olha para um estojo repleto de remédios coloridos. O homem tem cabelos e barbas brancos, usa  camisa branca e óculos de aro preto.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 10 de novembro de 2023 - Bruna Barros/Folhapress

Depois de muito hesitar, Bernardet resolveu prosseguir com o projeto. Chamou para ajudá-lo uma ex-aluna e amiga, a escritora Sabina Anzuategui. "Wet Mácula", pois, tem um autor e duas autoras. Suas vozes às vezes são evidentes; noutras não; e ele dialoga com uma e outra.

Assim, o livro é percorrido pela incerteza de quem é o narrador. A incerteza permeia também na matéria narrada. Não há um tema predominante. A cronologia é frouxa. Assuntos são apresentados a jato e logo abandonados; não escapam à condição de estilhaços, vinhetas, cacos.

É o caso das aulas que Fernando Henrique Cardoso, a quem chama de "príncipe marxista", deu na sua casa, em 1966. Ou do encontro com Marighella. Ou de suas relações com Glauber Rocha. Ou do papel das drogas na sua vida. Ou da passagem da hétero para a homossexualidade.

"Wet Mácula" usa uma expressão para designar esses fatos: fósseis narrativos. São historietas que, de tão repetidas para pessoas diversas durante anos, se distanciam da vivência, ganham vida própria. É a partir de ossos fossilizados que se deduz o dinossauro.

A dedução é difícil porque fósseis narrativos podem virar pó. Bernardet encerra o livro com um deles. Conta que, ao lançar um livro, um estudante berrava pela faculdade: "Não comprem esse livro!".

O escritor veio a ficar amigo do aluno. Anos depois, falou com ele do assalto ao livro. O estudante jurou de pés juntos que não tinha feito nada. Fica-se sem saber o que se passou. E mais: Bernardet acha irrelevante o fato ter acontecido ou não. Porque o fóssil narrativo, por definição, se modifica nas vísceras dos vivos.

Ele é irrelevante por mais um motivo: a vida real transcorre entre um fato arquiconhecido e outro, se passa num tempo morto onde nada de histórico ocorre. Talvez por isso a figura literária dominante de "Wet Mácula" seja a elipse.

Ela realça o que restou da vida, evidencia o vazio e prefigura a morte.

O livro só preserva dois fósseis, um do passado e outro presente. O passado: logo no início, numa cena belíssima, Bernardet e o irmão, ainda meninos, moram na França. Num Natal, saem de carro com o pai e passam pelo portão da casa, onde a mãe está de pé. Foi a última vez que a viram.

Os irmãos vieram para o Brasil com o pai e sua nova mulher. Bernardet brigou ferozmente com o pai até que, com a maioridade, saiu de casa. Ao se interessar por cinema, transformou o crítico Paulo Emílio Salles Gomes "numa figura paterna".

Agora, o presente: a beleza, a energia e a urgência de "Wet Mácula" provêm da aproximação da morte, de Bernardet tê-la tornado literatura. É nesse sentido que ele altera "Memórias Póstumas de Brás Cubas": "Sou um autor sobrevivente, e não um autor defunto ou um defunto autor". A que sobreviveu? A seu livro e a seus fósseis.

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