Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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A música de Roberto Carlos emoldura 1968 em 'Macunaíma' e 'Violência e Paixão'

Diretores usaram o Rei para ilustrar rebeldia política, liberação sexual e abertura às drogas

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Roberto Carlos não para. Tem shows marcados no interior paulista, Minas e Brasília. No mês que vem, para comemorar seu aniversário de 83 anos, fará megaespetáculos no Pacaembu e no Maracanã. Partirá depois em turnê pelos Estados Unidos. E fará seu indefectível especial de fim de ano.

Não se espera que cante algo diferente do que repisa há décadas. Encantou um público na juventude e incorporou a ele seus filhos, netos e bisnetos. São milhões os que logo reconhecem uma ou outra canção sua. Foi coroado rei por ser o cantor canônico de várias gerações.

O trono de Roberto Carlos no Brasil equivale ao de Julio Iglesias na Espanha e ao de Johnny Hallyday na França. O denominador comum é a vocalização de um gosto médio que tangencia modas e muda devagar. Ao evitar as inquietudes do presente, eles expressam uma sensibilidade estável.

Nem sempre foi assim. Antes de 1968, Roberto Carlos amoldou o pop à cena brasileira e se sagrou rei do iê-iê-iê, título decalcado de "She loves you, yeah, yeah, yeah", dos Beatles. Depois do ano fatídico, dedicou-se a baladas e boleros a-históricos.

No calor da hora, porém, Joaquim Pedro de Andrade e Luchino Visconti usaram Roberto Carlos para emoldurar os terremotos da rebeldia política, liberação sexual e abertura às drogas de 1968. E mais: o rei revisitado de "Macunaíma" e "Violência e Paixão" fala aos impasses de hoje.

Ao centro de um fundo preto o planeta terra azul, com um anel colorido ao seu entorno. No canto direito do anel luminoso está em pé e cantando a figura de Roberto Carlos. Ao fundo há quatro estrelas brilhantes.
Ilustração de Bruna Barros para a coluna de Mario Sergio Conti de 8 de março de 2024 - Bruna Barros

"Macunaíma", de 1969, atualizou o romance de Mário de Andrade, obra maior do modernismo. O grito de guerra do herói é "ai, que preguiça!". Ele diz que "pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são", e avisa, "não me olhe de banda que não sou quitanda".

Macunaíma nasce negro na mata verde, fica branco e vai para a cidade. Encontra ali a guerreira Ci, interpretada pela radiosa Dina Sfat. De jeans, metralhadora, rifle e revólver, ela mata meia dúzia de meganhas. Na trilha sonora, Roberto Carlos a aplaude: "Essa garota é papo firme!".

Ci é uma guerrilheira que peita a tigrada da ditadura, mas não tem nada do heroísmo agônico dos militantes martirizados. Pendendo mais para a esquerda festiva do que para a esquerda armada, ela "manda tudo pro inferno e diz que hoje isso é moderno".

Joaquim Pedro fez uma Ci protofeminista que acaba mal. Arma uma bomba-relógio no carrinho de seu bebê — Grande Otelo, hilário— e os dois vão pelos ares. Nem por isso o filme perde o pique; adere ao dito de outro modernista, Oswald de Andrade: "A alegria é a prova dos nove"

"Violência e Paixão", de 1974, não é alegre. Trata da guerra e paz entre a elite ilustrada e a burguesia que saiu do armário em 1968 —aquela que, como a brasileira na ditadura militar e no desgoverno de Bolsonaro, fez caras e bocas liberais e apoiou a barbárie fascistizante.

Visconti, conde e marxista, pôs muito de si mesmo no professor vivido por Burt Lancaster. Velho, viúvo, vergado pela vida, ele aluga o apartamento acima do seu para uma marquesa da nova burguesia.

Ela é casada e tem um amante, Konrad. Egresso das trincheiras de 1968, agora é um cafetão e traficante que transa com a marquesa, a filha e o namorado da moça.

É nesse melê que Roberto Carlos dá o ar da graça. O professor está recostado na cama. Escuta no gravador um adágio de Mozart e lembra da mulher morta (Claudia Cardinale), que tira o véu nupcial em câmera lenta. É uma das cenas mais belas da história do cinema.

Uma melodia distante se mescla aos poucos ao adágio. O espectador brasileiro toma um susto: cantada em italiano, é uma música de Roberto Carlos. É "À Distância": "Quantas vezes eu pensei voltar/ E dizer que o meu amor nada mudou/ Mas o meu silêncio foi maior/ E na distância morro/ Todo dia sem você saber."

O professor desliga o gravador e vai ver de onde vem o canto. Encontra numa alcova o amante da marquesa, a filha e o namorado dela.

Puxam fumo e, num claroescuro à Caravaggio, dançam nus. A moça vê o professor aparvalhado e lhe recita versos de W. H. Auden: "Se vir uma forma firme, deite/ E role, aproveite, se deleite/ Com uma moça ou rapaz/ Não vacile, tenha pressa/ Seja audaz, corra atrás/ A vida é breve, a hora é essa/ Não espere outra chance:/ Na tumba não há quem transe."

Essa cena de "Violência e Paixão" mostra que a rebelião de 1968 foi abastardada pela burguesia. Mas deixa ver o instante em que o encrencado claro-escuro de Caravaggio convive com a clareza libertária de Auden; a utopia na qual o som sublime de Mozart se funde com a música popular de Roberto Carlos.

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