Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Globo de Ouro Oscar

Inteligente e ambíguo, 'Anatomia de uma Queda' esvazia a vontade de saber

Como o ponto de vista do filme é feminino, a diretora Justine Triet calca a mão no determinismo dos gêneros

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"Anatomia de uma Queda", que estreia no Brasil na próxima quinta-feira, dia 25, é um filme de gênero em dois sentidos. Um é velho e vetusto.

O outro, recente e crescente.

Ele pertence ao gênero filme de suspense e tribunal. Um homem tomba do terraço da sua casa nos Alpes e mancha com sangue espesso a alva neve. Acidente, suicídio, assassinato? Impossível saber: a testemunha-chave, o filho do morto, é um menino quase cego, não sabe o que viu.

A viúva, mãe do garoto, é acusada de homicídio e vai a julgamento. As convenções do gênero são convencionalmente seguidas. Há o promotor hediondo e o advogado boa-praça. A juíza sábia. Provas que surgem do nada. A horda de repórteres babando bílis. A trama com quinas e piruetas.

No centro está uma imagem em zoom de o rosto de uma criança. No reflexo dos óculos da criança há uma paisagem de céu azul e alpes nevados.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 20 de janeiro de 2024 - Folhapress

Os clichês são tão batidos quanto a imagem do sangue na neve, repetida centenas de vezes no cinema. Antes mesmo da cena inicial, já no título o filme é uma barretada a "Anatomia de um Crime", o clássico dos clássicos dos thrillers judiciais, dirigido por Otto Preminger em 1959.

Contudo, a catadupa de lugares-comuns tem tudo a ver. Não é o caso de, como a hiena do desenho animado, lamentar: ó vida, ó céus, ó azar. "Anatomia de uma Queda" não cai no vazio. Prende a atenção durante duas horas e meia e fica cutucando a memória.

É eficaz no que tem a dizer.

Não foi à toa que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e dois Globos de Ouro, o de melhor filme estrangeiro e o de roteiro. É um sucesso de bilheteria e crítica onde passa. Mostra que a França faz filmes que Hollywood desaprendeu. Mas há mais: o segundo gênero, o feminino.

"Anatomia de uma Queda" é um filme de mulheres. Foi dirigido por Justine Triet, de 45 anos, autora do roteiro junto com o marido, o ator e diretor Arthur Harari. A protagonista, Sandra Voyter, além de mulher é estrangeira. É interpretada por uma atriz e tanto, Sandra Hüller.

Como o ponto de vista do filme é feminino, a diretora calca a mão no determinismo dos gêneros, inúmeras vezes invisível no cinema e na vida. Faz isso por meio de uma sutil subversão de expectativas. Esperamos ver tipos triviais, o macho alfa e a fêmea beta, mas topamos com gente complicada.

Assim, a cabeça do casal é Sandra e não o marido, Samuel. Ambos são escritores; ela é bem-sucedida e ele está empacado num livro que encalacrou há anos. Samuel é bonitão, quase um galã, enquanto a prosaica Sandra tem os traços atribuídos às teutônicas: é racional, fria, turrona.

Mas é ela a sedutora e adúltera, e ainda por cima bissexual; ele é o coió que quer colo. Quando partem para a ignorância, Samuel a chama na chincha e joga um balde de fel. Sandra retruca na sua fuça: "não se faça de vítima, está na pior porque quis". Sua expressão facial acrescenta "babaca!".

Não é bonito de se ver, mas o fulcro de "Anatomia de uma Queda" é a família de um casal e o filho. É ela que funciona como célula mater da sociedade, e não os indivíduos. A sociedade são os policiais, o júri, o tribunal, os jornalistas e, sobretudo, a gente que assiste ao filme e julga —nós.

Justine Triet mostra a família como um campo de batalha no qual se alternam ataques, contra-ataques e armistícios frágeis. Como Samuel é francês e Sandra, alemã, por exemplo, entram em acordo para falar em casa um idioma neutro, o inglês. Quando o casal se desavém, a guerra explode.

Deflagrada pela violência, a queda de "Anatomia" é na infelicidade, encapsulada em flashbacks que, se não explicam o presente de maneira cabal, são indícios de uma situação que vem de longe e calcificou.

O filme não generaliza essa situação melancólica. Ela cabe na frase que abre "Anna Kariênina" (na tradução de Irineu Franco Perpetuo): "Todas as famílias são parecidas, cada família infeliz é infeliz a seu próprio modo". Mas em boa parte das infelizes, suspeita-se, o patriarcalismo pulsa.

"Anatomia de uma Queda" prescinde das cartilhas feministas, é arte. Nuançado e ambíguo, filia-se ao realismo literário do século 19. Por isso, muito do deleite que proporciona vem do enredo inteligente e articulado, da narração fluida e da força da sua heroína problemática.

O filme seria outro, menor, se não tivesse no papel principal Sandra Hüller, nascida na falecida Alemanha do Leste. Ela encarna uma mulher que busca a verdade ao mesmo tempo em que a oculta. Empenha-se tanto que descobre que ninguém sabe nada de nada. Esvazia assim a vontade de saber se matou o marido, se ele se suicidou ou tropeçou. A verdade escapa.

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