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Martim Vasques da Cunha

Fim trágico de Macunaíma diz muito sobre governo desastroso de Bolsonaro

Impasse atual brasileiro atesta o fracasso do modernismo em reformar o país por meio da revolução estética

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Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[RESUMO] Paródia das narrativas medievais sobre a busca por virtude e objetos sagrados, 'Macunaíma' desde o início é uma saga fadada ao fracasso e sem redenção, cujo final trágico disfarça-se em riso amargo. Tido como símbolo da alma brasileira, o célebre personagem de Mário de Andrade dramatiza o fracasso do país de uma forma ainda não totalmente compreendida, o que diz muito sobre nosso impasse atual, diz autor.

Uma das grandes vítimas artísticas da pandemia foi o filme "A Lenda do Cavaleiro Verde" (2021), obra-prima de David Lowery que teve lançamento quase clandestino.

Baseado no famoso poema medieval inglês "Sir Gawain and The Green Knight", escrito em meados do século 14 por um anônimo, o longa recupera o clima mágico das lendas do "Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda".

Trata da busca por nobreza no mundo moderno; não a nobreza por títulos, é claro, mas sim de uma nobreza da alma, do cavalheirismo que acompanha o herói em sua jornada. O poema narra o desafio feito por um misterioso cavaleiro verde que surge no Natal em Camelot (residência de um rei Arthur adoentado). Gawain aceita a contenda e decepa a cabeça do adversário.

Ilustração de Camile Sproesser para nova edição de "Macunaíma", lançada pela editora Antofágica

De forma miraculosa, o cavaleiro verde continua vivo e diz que o vitorioso deve procurá-lo no final do próximo ano, na chamada Capela Verde, para um acerto de contas. O que interessa ao poeta anônimo é o que Gawain descobre sobre si mesmo neste meio-tempo.

Em sua adaptação, o diretor David Lowery aproveita esse mote, mas o expande usando uma linguagem simbólica, tanto para torná-lo mais espetacular em termos cinematográficos como também mais complexo na abordagem de temas antigos que, na verdade, permanecem atuais.

O primeiro deles, obviamente, é o da tradicional busca do herói por aprimoramento individual. Lowery, porém, adiciona um componente subversivo: aqui, a jornada termina aparentemente em uma derrota exterior, mas, ao mesmo tempo, em uma vitória interior. A consequência prática é a independência do herói diante das tentações.

Gawain ganha a nobreza dos títulos (entre eles, o de ser o sucessor do rei Arthur), mas perde a da alma assim que percebe a futilidade do poder. Ao mesmo tempo, sua renúncia ao reino deste mundo não possui nenhuma característica religiosa ou metafísica: é algo mais próximo da sabedoria prática e do estoicismo.
O segundo tema também tem relação com o da busca. Lowery, porém, não o aborda diretamente porque o próprio poema no qual se inspirou não explicita esse detalhe.

Trata-se do Santo Graal, o cálice que teria recolhido o sangue de Cristo na crucificação, objeto mítico buscado pelos cavaleiros da Távola Redonda, o eixo dramático que norteia toda narrativa arturiana moderna.

No filme de Lowery, o Graal é a fita verde amarrada na cintura que protege Gawain das agruras do tempo e da mortalidade, a mesma cor que nos remete à pedra esmeralda sempre equiparada ao cálice sagrado e que também se relaciona, por analogia, ao coração sagrado de Jesus Cristo.

E, por incrível que pareça, é justamente esse simbolismo que torna o filme de David Lowery muito importante para entendermos algumas peculiaridades da cultura brasileira —em especial neste momento de celebrações dos 200 anos de nossa Independência e do centenário da Semana da Arte Moderna.

Isso fica evidente quando relemos "Macunaíma - O Herói sem Nenhum Caráter" (1928), de Mário de Andrade, romance que é também uma consequência estética de tudo o que foi discutido naqueles dois eventos antológicos.

Batizado com um nome que é a súmula de diversos dialetos e que significa "o grande mal", o personagem-título é geralmente visto por estudiosos como um autêntico representante da alma brasileira.

A trama de "Macunaíma", composta de remendos de mitos e lendas indígenas e latino-americanos, fala da viagem empreendida pelo herói em busca da muiraquitã, uma joia de esmeralda que caiu do céu e que traria a felicidade plena a quem a possuísse.

A perda do talismã se deve ao furto feito pelo mascate Venceslau Pietro Pietra, avatar do gigante Piaimã. Isso provoca numerosas aventuras picarescas por São Paulo e Rio, nas quais o herói consegue recuperar a muiraquitã e volta para o mato de onde viera.

A tribo-mãe, porém, está destruída. Deprimido, Macunaíma perde a vontade de viver, despede-se do mundo, ascende ao céu e transforma-se na constelação da Ursa Maior.

Se compararmos os enredos de "A Lenda do Cavaleiro Verde" e "Macunaíma", fica evidente que um é o exato oposto do outro. No primeiro, como já dissemos, a derrota exterior nos leva à independência da vitória interior; já no segundo, tanto a derrota como a vitória ocorrem em ambos os planos, o exterior e o interior, com o adendo trágico de que o Graal de Mário de Andrade, a muiraquitã, torna-se algo irrecuperável.

De acordo com Gilda de Mello e Souza no livro "O Tupi e o Alaúde" (1979), Macunaíma é uma variação satírica dos relatos que sempre envolveram a busca por um algum amuleto sagrado, em especial "A Demanda do Santo Graal", o famoso escrito medieval que inspirou vários escritores.

Para a ensaísta, o personagem seria o sujeito que entra em uma aventura que não tem como dar certo, pois o objeto procurado não é só inatingível como também está em constante fuga.

Contudo, se tradicionalmente a narrativa de busca tem como fim a elevação do espírito humano, no caso brasileiro torna-se sua própria paródia, uma vez que Macunaíma não procura a virtude.

Quer apenas ser alguém dependente dos prazeres e das paixões, sem se preocupar em controlá-los, e por isso mesmo sua demanda terminará como uma tragédia disfarçada em riso amargo, pois o talismã não traz redenção nenhuma, apenas a danação definitiva, transformando-o naquilo que, desde o início, parecia ser o seu verdadeiro caráter: o de um "homem devastado".

Essa devastação é consequência de como "Macunaíma" representa o início do fim simbólico, tanto para Mário de Andrade como para o movimento modernista que influenciaria a cultura brasileira até os nossos dias.

No final do livro, Mário escreve que "Macunaíma não achou mais graça nesta terra". O romance, na verdade, dramatiza o fracasso do Brasil na sua tentativa de ser uma nação coesa e o do modernismo em querer reformar o país por meio da revolução estética.

Na busca pelo Graal tupiniquim, aquilo que poderia nos dar alguma transcendência, tudo terminou na constelação indistinta da Ursa Maior, que, na verdade, não passa de uma ânsia de autodestruição.
Infelizmente, os artífices do modernismo não quiseram perceber esse impasse. Cercaram-se de acólitos e epígonos que, até hoje, celebram seus feitos na mídia e no mercado editorial. Evitam, assim, a discussão adequada do problema apresentado nas maiores obras do próprio movimento.

Apenas três sujeitos aparentemente díspares entenderam o dilema. O primeiro foi Ariano Suassuna, o autor de "Auto da Compadecida" (1955). Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1990, ele afirmou que o Brasil estava "submetido a um processo de falsificação, de entrega e vulgarização" que, a seu ver, "é a impostura mais triste, a traição mais feia que já se tramou contra ele".

A solução proposta pelo escritor seria não escutar mais "a modernização falsificadora que (...), no campo ou na cidade, descaracteriza, assola e avilta o Brasil real". Isso passaria pelo fato de reconhecer que o país apenas conseguiu, com a modernidade de impostura, um "pacto demoníaco, através do qual vendemos a alma sem nada conseguir para o corpo".

O segundo foi o poeta Carlos Drummond de Andrade. No livro "A Rosa do Povo" (1945), há o célebre poema "Mário de Andrade Desce ao Inferno", em que o criador de "Macunaíma" é descrito como um homem que se doou por inteiro ao Brasil, mas, com sua morte precoce naquele mesmo ano, deixou a todos os seus discípulos a sensação de que estariam "amputados e frios".

No recente "Lira Mensageira" (2022), o sociólogo Sergio Miceli compreende que tal declaração fazia parte não só da tentativa de Drummond de querer ser o "orixá" existencial de uma geração que superaria o modernismo, mas seria sobretudo um disfarce, confeccionado para recuar dos impactos políticos e econômicos desse movimento artístico que se transformaria, nos anos seguintes, em um "cânone acidental" (segundo o escritor Marco Catalão).

Legitimado pelo Ministério da Educação liderado por Gustavo Capanema (de quem Drummond era braço-direito), em pleno Estado Novo, o mesmo modernismo de 1922 se ramificou, por exemplo, no desenvolvimentismo econômico que se tornou uma obsessão nos anos 1950 e 1960.

Para Gustavo Franco, a figura literária que representou esse momento foi Fausto, o erudito que não hesitou em firmar o pacto diabólico. "O desenvolvimentismo a qualquer preço, ou em flagrante descuido de suas consequências sociais e ambientais, produzindo inflação, desigualdade e devastação ambiental, está em toda parte", escreve o economista.

O terceiro sujeito que percebeu essas contradições do modernismo foi ninguém menos que Ernesto Araújo, o infame ex-ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro. No ensaio "Trump e o Ocidente", Araújo espelha no ex-presidente americano tudo aquilo que Bolsonaro deveria fazer em sua administração.

O que ligaria as duas figuras seria o Santo Graal. Em um Ocidente decadente, no qual o reino enfermo de Camelot passa a ser representado pelas organizações globalistas (o oposto da globalização), é necessário um líder providencial, aconselhado por um império de sábios, para recuperar o milagre do cálice sagrado e, assim, restaurar o divino no mundo.

Não foi por acaso que Bolsonaro fez questão de receber o coração do "patrono sagrado" da Independência brasileira, dom Pedro 1º. O presidente se espelha no monarca.

O modernismo de 1922 também ansiava pelo aspecto simbólico sobre o qual Bolsonaro também se inspira, direta ou indiretamente. A ironia é que a busca desvairada (e fracassada) pelo Graal em "Macunaíma" transformou-se em um triunfo ficcional criado pelos mesmos discípulos que hesitaram descer aos infernos, como foi articulado no passado por Drummond.

O efeito prático dessa atitude foi o desconhecimento de que a Semana de Arte Moderna nunca foi a solução civilizatória para os problemas causados pela administração desastrosa de Jair Bolsonaro —mas sim que esta última foi o seu resultado mais puro e cristalino. Sim, o "mito" é o nosso "homem sem nenhum caráter".

O mais engraçado disso (não seria macunaímico?) é notar que, influenciado por escritores antimodernistas como Julius Evola, René Guénon e Oswald Spengler, Araújo percebeu o óbvio que a maioria da nossa academia não quis ver.

Diferentemente de Gawain no momento em que se reencontra com o Cavaleiro Verde no filme, os nossos intelectuais jamais entenderam que a vitória exterior sempre leva à derrota de nós mesmos.

O Graal não é a fita verde mágica, a joia de esmeralda, a muiraquitã, o Ocidente restaurado, o líder providencial ou o órgão ressecado de um cadáver morto há quase 200 anos.

É o que resta em nossos corações quando tudo desaba ao nosso redor, como aconteceu conosco nos últimos anos. Recuperar isso é algo que a cultura brasileira precisa fazer com urgência se deseja permanecer independente nos próximos séculos.

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