"Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir" é um título meio borocoxô. Poderia ser desbragadamente brega: "Mulheres na Tormenta". Ou metido a modernoso: "Resiliências do Feminino". Ou, antenado com o estrelismo escandaloso em voga, picante: "Duas Celebridades na Cama".
Graças ao bom Dioniso, o deus do teatro, a peçonha comercial foi cancelada. O título é ótimo, pois o que se vê no palco é exatamente isso: Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir. São duas mulheres, uma atriz e a outra escritora, que interpretam e pensam a condição feminina.
A encenação não é uma peça. A iluminação é chapada, a atriz está vestida como se viesse da rua, não há cenário e a música é rarefeita. Sentada atrás de uma escrivaninha, tira folhas de um maço de papel, as lê sem excessos declamatórios e as põe numa pilha ao lado. O à vontade parece simples; não é.
A representação de Fernanda Montenegro é antinaturalista. Ela foge do mimetismo habitual —cujo último exemplo escabroso está em "O Maestro", filme no qual Bradley Cooper pôs uma prótese para ficar com o narigão de Leonard Bernstein.
No caso de Simone de Beauvoir, ela teria de enrolar um lenço em forma de turbante na cabeça, falar com a pressa de quem vai tirar o pai da forca, fazer uma plástica nos lábios para deixá-los bem finos.
A atriz tampouco reproduz as caras e bocas de sua vida civil. Inventa uma personagem que não é ela, nem Beauvoir, nem uma mescla de ambas. No início, o contraste resoluto entre seus graves e agudos causa estranheza.
O minimalismo e a estranheza retiram a gordura performática do espetáculo, reduzem-no ao osso: o raciocínio. O recital, de pensamento concentrado, não é para um público seleto. Cabem 500 pessoas no Teatro Raul Cortez, e os ingressos esgotaram em poucas horas. É arte para todos.
A técnica de Montenegro — de elocução precisa e ritmo calibrado— privilegia a clareza. Dirige-se a cada pessoa, e não a uma massa amorfa de espectadores. Em vez de criar climas e aconchegar, racionaliza. A perspectiva da brasileira se cristalizou antes que pisasse no palco.
Ela está na seleção dos trechos que fala. A francesa publicou 30 livros. São milhares de páginas de ensaios, romances, memórias. A atriz as garimpou e encontrou nexos que se destinam ao aqui e ao agora nacional. Parte dos textos foi tirada de "A Cerimônia do Adeus", uma elegia sem paralelo na literatura.
Seu tema são os últimos anos, a agonia e o fim de Sartre. O livro é um registro da ruína física e mental do filósofo. Ele arrola os achaques reservados à velhice, o coroamento inglório da vida: tombos, surdez, memória embaçada, cegueira, salas de espera de consultórios, alcoolismo, solidão irremediável, incontinência, resignação, morte.
"A Cerimônia do Adeus" é humano, demasiado humano. Montenegro, de 94 anos, não se espoja no funéreo. Grifa o "amor absoluto" que ligou os dois, em torno do qual gravitavam os "amores contingentes" de um e outra.
Ele era o sultão de uma ciranda de amantes teúdas e manteúdas; ela teve casos com homens e mulheres. A referência aos afetos instáveis serve para lembrar que a bigamia, os triângulos, a bissexualidade e as surubas não foram inventadas ontem, na Vila Madalena. Dependem de circunstâncias, dos ambientes onde as gentes se entrelaçam.
São atitudes que vêm, passam, voltam. A récita converge para a lâmina mais cortante da obra de Beauvoir, a análise pioneira de "O Segundo Sexo", lançado em 1949 e afiada nas décadas seguintes. "Não nascemos mulheres, tornamo-nos" é a frase que resume o livro. Mais que um destino biológico, a subordinação feminina é produto de uma história individual e coletiva.
Da mesma forma, não se nasce homem, torna-se um. A emancipação feminina, pois, abarca a humanidade, é um projeto. "Projeto" é palavra do léxico existencialista; diz respeito ao pensamento e à ação que mudam a vida. Por isso Beauvoir conta que engrossou uma passeata feminista em Paris.
Viu uma noiva na frente de uma igreja e, com um senso de humor à brasileira, juntou sua voz ao coro "libertem a noiva!".
A apresentação termina ao som de "Ne Me Quitte Pas" — não me deixe—, a linda canção de Jacques Brel. Quem pede a quem? Pode ser um eco de Beauvoir suplicando a Sartre que não a abandone. Ou de Montenegro pedindo que Fernando Torres não a deixe. Pelas palmas intensas, todavia, fomos nós —a plateia— que pedíamos a Fernanda Montenegro e a Simone de Beauvoir que não saiam de cena
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