Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Novo filme da saga 'Mad Max' mostra que a esperança é um erro

Já se foi a mágica, e ‘Furiosa’ fica muito aquém de ‘Estrada da Fúria’, tido como um dos melhores das primeiros anos do século

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O melhor de "Furiosa" surge no fim. No início dos créditos intermináveis, aparecem cenas de "Estrada da Fúria", o episódio anterior da franquia "Mad Max". Uns poucos instantes do filme de 2015 são muito melhores que as duas horas e 20 minutos do que se acabou de ver.

Foi-se a mágica. "Estrada da Fúria" foi considerado o melhor filme das duas primeiras décadas do século 21. Seu único concorrente era "A Origem", de Christopher Nolan, que veio a dirigir o abominável "Oppenheimer", um elogio ao massacre nuclear americano de Hiroshima e Nagasaki.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti. Ao centro, uma pequena silhueta de pessoa faz sombra no chão de cor alaranjada.
Bruna Barros/Folhapress

Não que "Estrada da Fúria" fosse profundo, alargasse a compreensão humana ou revolucionasse a estética do cinema. Longe disso. Como os outros produtos da série "Mad Max", o filme era mais raso que um pires.

O "Mad Max" original, de 1979, era uma fantasia revanchista. A mulher e a filhinha de um patrulheiro rodoviário foram assassinadas por uma gangue de punks motociclistas. Atormentado pelo remorso, o patrulheiro os trucidava numa orgia de trombadas, explosões e sadismo.

Foi um filme barato, de uma cinematografia marginal, a da Austrália, que fez sucesso na Europa e revelou duas estrelas, o ator Mel Gibson e o diretor George Miller, ambos de lá. O empoeirado deserto australiano servia de cenário para perseguições filmadas com fluência líquida.

Os dois episódios seguintes se passam num mundo pós-apocalíptico. Houve guerras nucleares por combustível, Estados ruíram e os desertos são disputados por hordas horripilantes. O núcleo dramático permanece o mesmo: a violência cega e primária da vingança.

O esquema dramatúrgico, condimentado pela ênfase adolescente em veículos turbinados que colidem em alta velocidade, muda em "Estrada da Fúria". Não só porque o careteiro Mel Gibson foi trocado por um britânico taciturno, Tom Hardy, e o deserto australiano pelo da Namíbia.

Mad Max deixa de ser o protagonista forçudo e machão. A franquia se torna um manifesto feminista, encarnado por uma paladina silenciosa, de cabeça raspada e sem o braço esquerdo, Furiosa, a motorista de caminhão interpretada pela sul-africana Charlize Theron.

Furiosa não é niilista como Mad Max, para quem "a esperança é um erro". É uma heroína civilizadora. Quer voltar ao matriarcado onde nasceu, mas vence de roldão o patriarcado de estupradores, e dá origem a uma linhagem em que as mulheres lideram a sociedade.

Mad Max sai de cena. O bonito ideário estava afeito ao feminismo que ganhara espaço no Ocidente nas décadas anteriores. Mas não foram as belas ideias que deram o tom a "Estrada da Fúria".

Sua força estava na técnica que embasava o enredo. Como "E o Vento Levou", ou a corrida de bigas em "Ben-Hur", o terceiro "Mad Max" coroou o desenvolvimento tecnológico do cinema.

Nunca se vira antes o balé de dezenas de câmeras operando simultaneamente, os detalhes significativos de um imenso deserto, uma paleta de cores de nuances infinitas. A trilha sonora era menos música e mais sonoplastia. O enredo ficava em segundo plano. O que saltava aos olhos era a plasticidade das imagens, que se engatavam sem sobressaltos.

"Estrada da Fúria" não teve roteiro. Foi filmado a partir dos desenhos do "storyboard" e orientações sumárias ao elenco. Como o cinema é uma arte eminentemente visual, o filme agradou resenhistas, cineastas e o grande público. É essa mágica, a combinação de artesanato com a última palavra da indústria, que desapareceu de "Furiosa".

O que predomina nele é a repetição conformista do já visto, o afã em levar a cabo um blockbuster corriqueiro, em detrimento da audácia artística de arriscar. Em termos sociológicos: as relações de produção domesticaram as forças produtivas disruptivas.

"A Estrada da Fúria" se passava em pouco mais de dois dias, era essencialmente uma caçada que terminava pela libertação inesperada das mulheres perseguidas. Já "Furiosa" se arrasta por 16 anos, nos quais a protagonista é escravizada e sofre em silêncio.

Enquanto o primeiro filme terminava com a vitória das mulheres, o segundo acaba com a reiteração da opressão delas. É um final absolutamente previsível porque, no universo da saga "Mad Max", "Furiosa" antecede cronologicamente "Estrada da Fúria".

Sem inventividade, e repetindo mecanicamente truques tecnológicos, "Furiosa" poderia ter sido dirigido por Steven Spielberg, de tão grandiloquente e chocho que é. Por vias tortas, agora a razão está com o Mad Max machista, aquele que dissera que a esperança é um erro.

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