Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Descrição de chapéu Financial Times

Um segundo governo Trump colocaria a República em perigo

O que o governo de um nacionalista da escola 'América acima de tudo' significaria para a credibilidade dos sistemas ocidentais?

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Na semana passada, os Estados Unidos deram mais um passo em sua jornada rumo à autocracia, quando Liz Cheney foi derrotada na primária republicana em seu distrito eleitoral do estado de Wyoming. O pai dela é o ex-vice-presidente Dick Cheney, que foi o mentor da guerra no Iraque durante o mandato de George W Bush. Ela, além disso, tem credenciais conservadoras irrepreensíveis. Mesmo assim, se tornou anátema para os republicanos. Seu crime? Ela acredita que aceitar o resultado de eleições justas é um dever maior do que promover as mentiras do "grande líder" de seu partido.

O Partido Republicano adotou o "Führerprinzip" ("princípio da liderança") que os alemães impuseram na década de 1930. É o conceito de que a lealdade a um líder que define o que é verdadeiro e certo é a obrigação primordial. A adesão dos republicanos à Grande Mentira de Trump, de que ele ganhou a eleição presidencial passada, é um exemplo perfeito desse princípio. No caso em pauta, além disso, o conceito se contrapõe diretamente a um valor central da democracia liberal, o de eleições justas. Há dez anos, a maioria de nós teria pensado que um desdobramento como esse seria inconcebível nos Estados Unidos. Mas, com a ascensão de Donald Trump, esse resultado se tornou provável. Agora a reação, nem tanto de Trump à sua derrota, mas de seu partido às mentiras dele, proporciona outro momento decisivo.

O ex-presidente Donald Trump acena ao deixar a Trump Tower em Nova York - David 'Dee' Delgado - 10.ago.22/Reuters

Como argumentam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, da Universidade Harvard, em seu esplêndido livro "Como as Democracias Morrem", não é difícil subverter uma democracia. É algo que já aconteceu muitas vezes, tanto no passado quanto mais recentemente. Primeiro é preciso subverter o sistema eleitoral. Segundo, capturar os árbitros (o Judiciário, as autoridades fiscais, as agências de inteligência, polícia e segurança). Terceiro, marginalizar ou eliminar opositores políticos e, acima de tudo, a mídia. Em apoio a todas essas agressões deve haver uma insistência feroz na ilegitimidade da oposição e na "falsidade" de informações que não se alinhem às mentiras que o líder considere mais úteis no momento.

Em seu primeiro mandato, Trump conseguiu muito progresso ao estabelecer suas mentiras como verdade, para aqueles que o apoiam. Mas nem ele nem seus subordinados haviam ainda descoberto como alterar o sistema eleitoral ou o governo, em parte porque ele ainda não tinha os auxiliares "certos" —ou seja, assessores fanáticos, competentes e dedicados. Ele estava cercado de pessoas agora consideradas "desleais", ou seja, por pessoas que tinham pelo menos alguns princípios.

Isso mudou. Trump agora deu sua cara ao partido. A defenestração de Cheney é prova disso. Igualmente importante é a convicção amplamente compartilhada entre os republicanos de que Trump está acima de prestar contas por seu comportamento, perante a lei ou mesmo perante o Congresso. Ele e seu partido, como argumentou Robert Kagan, também tiraram vantagem das mentiras sobre o "roubo" da eleição para justificar a subversão do processo eleitoral nos Estados Unidos, um objetivo quanto ao qual muito progresso está sendo conseguido.

A próxima etapa crucial para Trump é a substituição dos líderes e funcionários das instituições centrais do Estado por indivíduos pessoalmente leais a ele. Para que isso aconteça, ele precisa primeiro se tornar presidente. É por isso que o progresso na subversão das eleições é importante, assim como é importante manter Trump fora da prisão. Mas em dois artigos recentes, Jonathan Swan, da Axios descreveu outra coisa que seria vital: um plano para garantir que o governo seja composto por verdadeiros fiéis, de cima abaixo. Um aspecto crucial disto, ele aponta, seria substituir o quadro permanente das agências do governo por profissionais leais a Trump e cuidadosamente selecionados. Se os republicanos conseguirem tomar o controle do Congresso, pode se tornar menos difícil imaginar que algo assim aconteça.

Suponha, portanto, que pessoas fiéis a Trump comandem o FBI, polícia federal americana, a CIA (Agência Central de Inteligência) e a Receita Federal. Suponha além disso que fiéis sejam colocados em todos os postos militares mais importantes, sob um secretário de defesa dedicado. Suponha que fiéis sejam colocados no conselho do Fed (Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos) e em todas as agências regulatórias significativas. Imagine o que isso significaria para o Estado de Direito e os direitos civis. Imagine, também, a pressão que tais agências poderiam exercer sobre as empresas independentes, incluindo as de mídia.

A lógica do mercado em uma autocracia é a lógica do capitalismo de compadres. Será que os Estados Unidos provariam ser muito diferentes? Talvez o sistema federal e o Judiciário consigam proteger a independência pessoal. No entanto, se pessoas cujo único princípio é a lealdade ao líder formassem as equipes do governo federal, seria difícil resistir à vontade dele.

Despotismo significa governo sem prestação de contas. Não significa governo competente ou intrusivo. É possível que o despotismo seja incompetente e preguiçoso. Há inúmeros exemplos disso. Mas seria despotismo, de qualquer forma.

O que significaria para o mundo um segundo governo Trump desse modelo? O que isso significaria, acima de tudo, para os aliados dos Estados Unidos? O que o governo de um nacionalista da escola "América acima de tudo", com uma equipe como a descrita acima, significaria para a credibilidade que resta ao sistema econômico liberal internacional? O que isso significaria para a cooperação planetária? "Nada de bom" é a resposta a todas essas perguntas. O fim da "excepcionalidade americana" provavelmente significará a formação de esferas de interesse distintas como base da ordem global. Há quem possa gostar disso. Mas seria também uma transformação —catastrófica, a meu ver— em direção a um mundo de despotismo.

No ano 27 A.C., a república romana se transformou na ditadura militar que costumamos chamar de império romano. Não é impossível que uma transformação semelhante esteja em curso nos Estados Unidos. Isso ainda pode parecer inconcebível para a maioria das pessoas. Espero que assim seja. Afinal de contas, Trump é velho. Ele pode não ter um substituto adequado. No entanto, a cada dia ele tanto tira vantagem quanto expõe a desmoralização da República americana. O conservadorismo americano se tornou um movimento nacionalista radical, fiel às verdades inventadas por um homem e dedicado à derrubada do "Deep State", um termo que o movimento usa para designar o governo de seu próprio país. Dick Cheney diz que Donald Trump é "a maior ameaça que já existiu à nossa República". Quanto a isso, devemos acreditar em Cheney: ele de fato é.

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