Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times PIB

A ameaça de uma década perdida no desenvolvimento

É preciso encontrar uma maneira de resolver os problemas de dívida dos países mais vulneráveis do mundo

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Financial Times

Os choques dos últimos três anos atingiram todos os países, mas principalmente os países emergentes e em desenvolvimento. Como resultado, segundo as Perspectivas Econômicas Globais 2023, recém-divulgadas pelo Banco Mundial, a convergência das rendas médias entre países pobres e ricos estagnou. Pior ainda, talvez não retorne tão cedo, dados os danos já causados e que provavelmente persistirão nos próximos anos.

Até o final de 2024, os níveis do PIB (Produto Interno Bruto) das economias emergentes e em desenvolvimento deverão estar 6% abaixo do que se esperava antes da pandemia. A perda cumulativa do PIB desses países entre 2020 e 2024 está prevista em 30% do PIB de 2019.

Em áreas frágeis e afetadas por conflitos, calcula-se que a renda real per capita terá caído completamente até 2024. Se a economia global desacelerar mais do que o previsto hoje, em consequência de uma política monetária restritiva e talvez de outros choques, esses resultados poderão facilmente ser piores.

Rua comercial em Xangai, na China - Aly Song/Reuters

Essas perdas, com tudo o que significam para a situação das populações mais vulneráveis do mundo, mostram o impacto da pandemia, da guerra na Ucrânia, do aumento de preços da energia e dos alimentos, do aumento da inflação e do forte aperto da política monetária em países de alta renda, principalmente nos Estados Unidos, e consequente valorização do dólar.

Um perigo óbvio agora é o das ondas de inadimplência em países em desenvolvimento superendividados. Juntos, esses choques causarão efeitos duradouros, talvez décadas perdidas, em muitos lugares vulneráveis.

Isso já aconteceu antes. De fato, foi o que aconteceu na América Latina após a crise da dívida de 1982. Essa crise, deve-se lembrar, também se seguiu a um surto de empréstimos privados aos países em desenvolvimento, então chamado de "reciclagem" dos superávits dos exportadores de petróleo.

Infelizmente, esse aumento da dívida foi seguido pela invasão do Irã pelo Iraque, o segundo "choque do petróleo" (o primeiro em 1973), o aumento da inflação, um forte aperto na política monetária dos EUA e um dólar mais forte. Seguiu-se um desastre –uma crise de dívida que durou uma década.

De maneira perturbadora, o recente endurecimento da política monetária pelos bancos centrais das principais economias, o Grupo dos 7, tem sido mais parecido com o dos anos 1970 e início dos 80 do que com qualquer outro desde então, tanto em velocidade quanto em tamanho. De acordo com as atuais previsões de juros implícitos no mercado, o aumento acumulado será próximo de 400 pontos-base em 17 meses. O aumento de maio de 1979 acabou sendo maior, mas também levou mais tempo.

É verdade que as taxas partem de um nível muito mais baixo desta vez. Mas talvez não faça muita diferença se as pessoas confiarem nessas taxas baixas. Além disso, a valorização do dólar americano tem sido particularmente forte. Para os países que têm dívida externa substancial denominada na moeda dos EUA, isso também aumentará acentuadamente os custos do serviço da dívida.

É bom que desta vez os empréstimos não tenham sido tanto de bancos a taxas variáveis, mas de títulos, que têm vencimentos mais longos e taxas fixas. No entanto, um súbito corte no fluxo de crédito criará um arrocho impiedoso.

O Banco Mundial mostra um aumento de 17 pontos percentuais nos spreads de empréstimos soberanos em moedas estrangeiras de países importadores de commodities com classificações de crédito fracas em 2022. De fato, esses países estão excluídos dos mercados.

Além disso, a dívida externa da África Subsaariana também é alta, em mais de 40% do PIB. Não é de surpreender que tenha havido um grande declínio na emissão de títulos públicos e privados em países emergentes e em desenvolvimento desde fevereiro de 2022, em comparação com o ano anterior.

Inevitavelmente, os países altamente endividados que já sofreram o choque da Covid e uma forte deterioração em seus termos de troca, enquanto os preços dos alimentos e da energia disparavam, agora enfrentarão problemas ainda mais sérios e duradouros. Isso também incluirá um grande número de países de baixa renda, onde os meios de subsistência de muitos já estão à margem da sobrevivência.

Segundo o banco, o número de pessoas que sofrem de "insegurança alimentar" (isto é, estão à beira da fome) em países de baixa renda saltou de 56 milhões em 2019 para 105 milhões em 2022. Quando isso poderá ser revertido?

Sabemos também que muitas crianças perderam os pais durante a pandemia e que sua educação foi seriamente prejudicada. Além disso, o investimento físico caiu drasticamente. Assim, para os países emergentes e em desenvolvimento como um todo, o banco prevê que o investimento agregado em 2024 será 8% menor do que o esperado em 2020.

Se acrescentarmos a probabilidade de problemas de dívida duradouros e, portanto, a interrupção dos fluxos de capital, a possibilidade de uma década perdida para a convergência certamente se torna altamente provável para muitos países. É desnecessário dizer que nesse ambiente também não será feito muito progresso na transição energética em muitos lugares.

A Covid não foi culpa desses países. A falta de cooperação global para lidar com ela não foi culpa deles. A falta de financiamento oficial externo adequado não foi culpa deles. A inflação global não foi culpa deles. A guerra não é culpa deles. Mas se os países de alta renda não oferecerem a ajuda de que agora evidentemente precisam a culpa será inequivocamente deles.

As democracias de alta renda desejam embarcar numa guerra de valores com a China. Bem, aqui está uma batalha. É preciso encontrar uma maneira de resolver os problemas da dívida que agora estão surgindo de maneira efetiva e não, como aconteceu na América Latina, depois de quase uma década de fingimento. É preciso encontrar uma maneira de escapar do círculo vicioso em que a baixa qualidade de crédito gera spreads impagáveis, que geram crises de dívida e, então, ainda menor qualidade de crédito.

Isso não interessa apenas aos países pobres. Interessa também aos ricos. Os problemas dos países frágeis e empobrecidos também se tornarão deles. É hora de fazer as coisas de modo diferente. Na próxima semana, pretendo considerar como.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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