Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf

A ameaça e a promessa da inteligência artificial

Tecnologia pode ser a que mais transformará o senso dos seres humanos sobre si mesmos

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Financial Times

Em 1900, o Reino Unido tinha 3,3 milhões de cavalos. Esses animais forneciam força de tração, transporte e montarias para a cavalaria. Hoje, restam apenas os animais de recreação. Os cavalos são uma tecnologia ultrapassada. Seu número no Reino Unido caiu em cerca de 75%.

Será que os seres humanos também poderão se tornar uma tecnologia ultrapassada, substituídos por máquinas que não são apenas mais fortes e mais hábeis, mas também mais inteligentes e até mais criativas?

Dizem que a ameaça é remota. No entanto, essa opinião é uma questão de convicção. Talvez as máquinas possam fazer melhor do que nós muito daquilo que precisamos, com exceção de serem humanas e cuidarem de nós como os humanos fazem.

No entanto, mesmo que não haja ameaça de uma tal revolução, os recentes avanços na inteligência artificial são altamente significativos. De acordo com Bill Gates, eles são o desdobramento mais importante desde os computadores pessoais. Assim, quais podem ser podem ser as implicações disso? Será possível controlá-las?

ChatGPT, bot de inteligência artificial generativa da empresa americana OpenAI - Florence Lo/Reuters

O ponto de partida natural está no emprego e na produtividade. Um artigo de David Autor, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e coautores oferece uma estrutura analítica útil e conclusões preocupantes sobre o que aconteceu no passado. Ele distingue a inovação que torna mais trabalhadores necessários da inovação que automatiza o trabalho. Sua conclusão é que a "a maior parte dos empregos atuais é encontrada em novas especialidades de trabalho introduzidas de 1940 em diante".

Mas o foco desse novo trabalho mudou das ocupações de produção e de escritório com remuneração média, antes de 1980, para profissionais altamente remunerados e, em segundo lugar, serviços de baixa remuneração, depois disso. Assim, a inovação vem esvaziando cada vez mais os empregos de renda média.

Além disso, as inovações geram novos tipos de trabalho apenas quando complementam empregos, não quando os substituem. Por fim, os efeitos da automação que corroem a demanda se intensificaram nas últimas quatro décadas, enquanto o efeito do aumento da demanda não se intensificou. Nada disso é muito animador, especialmente porque o crescimento geral da produtividade vem sendo bastante modesto de 1980 para cá.

E quanto ao futuro? Sobre isso, uma análise do banco Goldman Sachs é otimista e ao mesmo tempo preocupante. O estudo argumenta que a "combinação de economias significativas nos custos de mão de obra, criação de novos empregos e crescimento da produtividade dos trabalhadores não deslocados aumenta a possibilidade de um boom na produtividade da mão de obra".

Isso seria semelhante ao que ocorreu após o surgimento do motor elétrico e do computador pessoal. O estudo estima que a inteligência artificial generativa, em particular, pode expandir o crescimento anual da produtividade da mão de obra dos Estados Unidos em 1,5 ponto percentual. O aumento seria maior nos países de alta renda do que nos países em desenvolvimento, embora o momento dessa mudança seja incerto.

Em termos mundiais, o estudo aponta que 18% do trabalho poderia ser automatizado pela inteligência artificial, novamente com efeitos maiores nos países de alta renda. No caso dos Estados Unidos, a parcela de trabalho exposta à inteligência artificial varia entre 15% e 35%, a depender da estimativa. Os empregos mais vulneráveis serão os de escritório e administrativos, jurídicos e de arquitetura e engenharia. Os menos expostos serão os de construção, instalação e manutenção.

Socialmente, o impacto recairá mais fortemente sobre os trabalhadores de colarinho branco com nível de educação relativamente alto. O perigo, portanto, é a mobilidade descendente das classes média e média-alta. O impacto social e político de tais mudanças parece evidente demais, mesmo que o efeito geral seja de fato um aumento da produtividade. Ao contrário dos cavalos, as pessoas não desaparecerão. E além disso, elas têm direito de voto.

No entanto, esses efeitos econômicos estão muito longe de contar a história toda. A inteligência artificial é uma mudança muito maior do que isso. Ela levanta questões profundas sobre quem somos e o que somos. Pode ser a tecnologia mais transformadora de todas com relação ao nosso senso de nós mesmos.

Considere alguns desses efeitos mais amplos. Sim, talvez possamos ter juízes racionais e inescrutáveis e uma ciência melhor. Mas também poderemos ter um mundo de informações, imagens e identidades perfeitamente falsificadas. Poderemos ter monopólios e plutocratas mais poderosos. Poderemos ter uma vigilância quase completa por parte de governos e empresas.

Poderemos ter uma manipulação muito mais eficaz do processo político democrático. Yuval Harari argumenta que "a democracia é uma conversação, e conversações dependem da linguagem. Quando a inteligência artificial pirateia a linguagem, ela pode destruir nossa capacidade de manter conversações significativas, destruindo assim a democracia". Daron Acemoglu, do MIT, argumenta que precisamos entender esses danos antes soltarmos as rédeas da inteligência artificial. Geoffrey Hinton, um dos "padrinhos" da inteligência artificial, até decidiu pedir demissão do Google.

O problema com a regulamentação da inteligência artificial, no entanto, é que, diferentemente, por exemplo, dos medicamentos, que têm um alvo conhecido (o corpo humano) e objetivos conhecidos (uma cura de algum tipo), a inteligência artificial é uma tecnologia de uso genérico. É polivalente. Pode mudar economias, a competitividade nacional, o poder relativo, as relações sociais, a política, a educação e a ciência. Pode mudar a forma como pensamos e criamos, e talvez até mesmo como entendemos nosso lugar no mundo.

Não há como imaginar que deslindaremos todos esses efeitos. Eles são muito complexos. Seria como tentar entender, no século 15, o efeito que a máquina de impressão de Gutenberg viria a ter. Não podemos esperar chegar a um acordo sobre o que deve ser favorecido e o que deve ser evitado. E mesmo que alguns países chegassem a um acordo quanto a isso, não haveria como deter os demais. Em 1433, o império chinês interrompeu suas tentativas de projetar poder naval. Isso não impediu que outros países o fizessem e, por fim, derrotassem a China.

A humanidade é o Doutor Fausto. Como o personagem, ela também busca conhecimento e poder e está preparada para fazer quase qualquer barganha para alcançá-los, independentemente das consequências. Pior ainda, ela é uma espécie composta de Doutores Faustos concorrentes, todos buscando conhecimento e poder, como ele fez. Estamos vivenciando o impacto da revolução da mídia social em nossa sociedade e política. Alguns alertam sobre suas consequências para nossos filhos. Mas não podemos escapar às barganhas que fizemos. Tampouco deteremos essa revolução. Somos Faustos. Somos Mefistófeles. A revolução da inteligência artificial continuará.

Tradução de Paulo Migliacci

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