Os sistemas autoritários nunca são estáticos, e a República Islâmica do Irã, desde sua fundação, em 1979, sempre alternou entre momentos de extrema violência (1981-87) e tentativas reformistas (1997-2000).
A recente chegada ao poder de Ebrahim Raisi, um ultraconservador que esteve diretamente envolvido na execução de 5.000 prisioneiros políticos em 1988, é o prenúncio de uma nova era de fechamento do regime. Essa tragédia é imputável à política externa dos Estados Unidos sob Donald Trump.
Em 2018, Trump suspendeu a participação dos EUA no Plano de Ação Conjunto Global, o sofisticado acordo assinado em 2015 para o controle da indústria nuclear iraniana que combinava multilateralismo e ciência, e o substituiu por um regime medieval de sanções internacionais que ignora as recomendações de boas práticas mais elementares, como as exceções humanitárias.
A mudança de orientação agravou dramaticamente a situação no Irã, que enfrenta dificuldades até para importar remédios e vacinas contra a Covid, e conferiu nova legitimidade ao projeto de poder da república islâmica, muito abalado pelo Movimento Verde, a contestação social que paralisou o país em 2009.
A regressão política no Irã revela os limites da estratégia de sanções, o principal instrumento de regulação internacional desde o colapso da União Soviética. Esse modelo tem como premissa o enfraquecimento em negociações dos governos visados a partir do isolamento. Trata-se de uma fantasia.
Teerã tem resistido às pressões norte-americanas por meio de uma diplomacia alternativa que tem a América Latina como pedra angular. Num movimento que se acelerou depois da pandemia, o Irã vem desenvolvendo uma parceria estratégica com a Venezuela, a quem assiste na retomada da decrépita indústria petrolífera em troca de petróleo não refinado e ouro.
Todo esse movimento é alimentado pela China, que ignora alegremente as restrições comerciais e importa desses países cerca de um milhão de barris por dia. Esse comércio triangular, sustentado por rotas marítimas dissimuladas e redes financeiras alternativas, é tão próspero que o Irã até se dá ao luxo de assumir riscos frente aos Estados Unidos. No começo de junho, um navio de guerra iraniano a caminho do Caribe só desviou para África depois que Washington ameaçou tomar “medidas apropriadas”.
A política de sanções contra o Irã e a Venezuela serviu apenas para garantir a sobrevida dos dois regimes e consolidar a existência de duas ordens internacionais, uma dominada pela China e outra pelos EUA.
Em breve, toda essa discussão vai reverberar no debate doméstico brasileiro. Quando Bolsonaro voltar a usar a Venezuela como espantalho na campanha eleitoral, a oposição precisará ter uma resposta à altura do desafio. Ela passa por reconhecer a urgência de uma transição democrática em Caracas mas também por denunciar a falência do sistema de sanções, apontando uma alternativa.
Para o Brasil, o regresso de um modelo de governança global baseado no multilateralismo não é apenas a única forma de sair do ostracismo em que se encontra. É também a única solução para evitar uma nova e indesejada Guerra Fria na América Latina.
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