A comoção em torno do caso Covaxin oferece uma oportunidade única para desenhar um paralelo entre os dois governos cujo sadismo, clientelismo e negligência mais contribuíram para o desespero e a morte de seus cidadãos durante a pandemia: o brasileiro e o indiano.
O etno-nacionalista hinduísta Narendra Modi, poderoso premiê e pretendente a autocrata, divergiu de outros populistas no começo da pandemia e instituiu um lockdown radical, mas depois enveredou pelo negacionismo fanático.
Em março deste ano, Modi, enfraquecido pelo colapso da economia indiana, autorizou e até estimulou gigantescos encontros religiosos hinduístas que alimentaram a pior onda da pandemia até agora.
Na gestão da campanha de imunização, Modi parece ter conseguido levar até as últimas consequências planos que se parecem com os que o governo Bolsonaro tentou lançar, mas não teve capacidade de implementar. O governo indiano fez tudo para atrasar até o limite a aprovação das vacinas ditas mRNA, como a Pfizer e a Moderna, que só devem ser aprovadas nas próximas semanas.
A sabotagem, que se assemelha à recusa sistemática do governo Bolsonaro em comprar esse tipo de tecnologia, tinha um objetivo claro: criar uma gigantesca reserva de mercado para vacinas locais,
produzidas e distribuídas por industriais próximos do poder —das quatro empresas autorizadas a fabricar a Covaxin, três são estatais comandadas por aliados de Modi.
Essa política necronacionalista implicava a aprovação da Covaxin o mais rapidamente possível, à revelia de todos os protocolos de controle. Uma medida fatal para a credibilidade da vacina, que até hoje tem poucos compradores no exterior e é alvo de desconfiança generalizada entre a população indiana. Agora, o governo corre atrás do prejuízo.
No domingo, Modi implorou aos indianos para se imunizarem contra a variante delta.
Além da Covaxin, outro pilar do “Plano Modi” é o envolvimento do setor privado, uma medida considerada ineficiente e imoral em situações emergenciais. Fragmentada e submetida a jogos de influência regionais, a campanha de imunização da Índia, o maior fabricante de vacinas do mundo, tem sido um pesadelo.
O modelo descentralizado obriga os estados a competir entre si por insumos; a participação livre do setor privado inflaciona os preços das vacinas; o sistema de cadastramento digital, que abusivamente ostenta a imagem de Modi, exclui milhões de indianos sem acesso a telefone e internet.
Não é coincidência o fato de um dos principais articuladores da Covaxin, Ricardo Barros, também fazer parte do grupo que tentou aprovar a aquisição de vacinas pelo setor privado e, mais amplamente, arrancar do SUS o controle da campanha de imunização.
Se a sociedade civil tivesse deixado Jair Bolsonaro e seus aliados trabalhar, como ele tantas vezes reclama, o Brasil estaria distribuindo uma vacina de qualidade questionável por intermediários privados de forma desigual e viciada, seguindo uma estratégia ultraclientelista dissimulada por um discurso nacionalista.
Muito mais que uma vacina, o governo Bolsonaro queria importar da Índia o “Plano Modi”: uma versão melhorada do seu projeto genocida.
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