Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Mauricio Stycer

Contra os apóstolos da moderação

É um dever sagrado do crítico estar errado, provoca crítico do The New York Times

A revolução digital colocou em xeque a crítica especializada. Com a proliferação de canais de expressão (blogs, sites, redes sociais), nunca foi tão forte a ideia de que qualquer pessoa é capaz de escrever uma resenha e opinar criticamente sobre produtos culturais e de entretenimento.

Para quem está no ramo há mais tempo, é cada vez maior o incômodo com as consequências dessa percepção. Como sintetizou Rowland Manthorpe, na revista Wired, "o pior de tudo é que uma crítica ou resenha, no final das contas, é apenas uma opinião, e uma vez que todo mundo pode expressar a sua, o seu valor diminui".

Em um artigo publicado em maio, o jornalista fala da dificuldade que teve de encontrar boas análises críticas sobre o vídeo musical "This Is America", lançado naquele mês por Childish Gambino. "Uma boa crítica sente o gosto do que está no ar, fareja a hipocrisia, o doce aroma da verdade, o cheiro do que está por vir. Uma boa resenha é generosa, ou cruel, mas nunca vacilante."

E, irônico, acrescentou. "Ao menos era." Hoje, diz, a frase "escreva uma crítica" não evoca o nome de nenhum grande especialista, mas Airbnb, Amazon e Tripadvisor. "Uma boa crítica é quatro estrelas ou mais. O algoritmo fará o resto."

Menos pessimista, A. O. Scott, o principal crítico de cinema do The New York Times, reconhece as dificuldades presentes "na floresta da abundância cultural moderna", mas lembra: "A hora da crítica é sempre agora porque o imperativo de pensar claramente, de insistir no equilíbrio necessário entre razão e paixão, nunca desaparece".

Scott faz uma espécie de ode à crítica profissional no livro "Better Living Through Criticism" (Penguim Books, 2016, disponível na Amazon), um estudo que alia erudição a referências pop, filmes da Marvel e séries de TV. A edição de julho de 2018 da revista Serrote reproduz (traduzidos por José Geraldo Couto) alguns trechos da obra, em especial a sua precisa e bem-humorada reflexão sobre "o dever sagrado do crítico estar errado".

Scott, claro, não está falando da crítica preguiçosa, ignorante ou ofensiva —e ele dá vários exemplos do que não fazer. "Não: a tarefa do crítico é traçar um caminho sinuoso, retorcido, vacilante e incompleto em direção à verdade e, por conta disso, travar uma batalha sem fim contra as certezas prematuras e duradouras."

Assim como o editor da Wired, o crítico do New York Times considera que "nenhum crítico que se preze pode ser um apóstolo da moderação". Scott também lembra que "nenhuma crítica é capaz de se escapar ou se livrar de seu tempo". Por isso, "o crítico está sempre correndo o risco de cometer, no momento, o que parecerá a gerações subsequentes um inexplicável lapso de julgamento".

Scott enumera no livro os muitos "erros" que os críticos cometem de boa fé no esforço de sistematizar as suas impressões, entre os quais superestimar os feitos do passado e subestimar os esforços do presente; ou projetar o futuro e negligenciar o que está à suas costas. "Pode ser sóbrio ou loquaz, direto ou barroco, abrupto ou recatado, diletante ou fanático. Pode se esforçar por ser coerente ou contradizer alegre e amplamente a si próprio."

E conclui, brilhantemente: "Não importa. Na verdade, importa bastante. Importa mais do que qualquer coisa. Você pode ter certeza de que vai estar errado ou errada --vai insultar o bom gosto, contrariar a opinião pública, o julgamento da história ou sua própria consciência atormentada. E não há nenhuma bela síntese, nenhum modo ou método crítico que possa resolver essas contradições".

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