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Em novo videoclipe, Donald Glover põe EUA refletidos num espelho sujo e sem dó

Sob codinome Childish Gambino, ator e rapper expõe desigualdade e violência no país mais rico do mundo

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Nova York

Isto é a América. É o lugar onde um atirador abre fogo contra cantores incautos, onde o anúncio do apocalipse passa batido no meio da festa e olhares se perdem deslumbrados diante do espetáculo de uma celebridade dançante.

O país mais rico do mundo surge desfigurado, ou talvez refletido num espelho sujo e sem dó, no violentíssimo clipe de “This Is America”, a canção mais nova do ator e rapper Donald Glover, que usa aqui o seu codinome Childish Gambino.

Sem camisa, Glover requebra esquisito, arregalando os olhos e fazendo caretas até o momento, segundos depois, em que dispara à queima-roupa contra a nuca de um músico tocando violão –sua arma é logo recolhida e embrulhada feito um bicho frágil e ferido.

Essa estranhíssima coreografia desvia a atenção do horror ao redor para a imagem do negro dócil e alegre, o bobo da corte da caixa de ressonância de tuítes raivosos em que se transformou a sua América.

É como se Glover não coubesse na própria pele. Ele é um ser torto, animalesco e serelepe como a figura sinistra que resgata dos tempos mais sombrios da história deste país, resultando numa acachapante e ácida caricatura de um negro construída por um negro.

O assassino em série que dança no meio da multidão ali é Jim Crow, ou pelo menos a reencarnação do personagem teatral surgido no século 19 que reunia num só corpo todos os estereótipos dos negros escravizados. Ele era folgado, pouco inteligente e deformado por décadas de trabalho forçado nas plantações.

Na história americana, o nome Jim Crow depois passou a resumir toda a política de segregação racial implantada no sul do país mesmo depois da abolição da escravidão e, nos últimos anos, foi sendo lembrado para atacar a desproporção de negros para brancos na população carcerária.

Desde que foi lançada no último fim de semana, a canção criada por Glover domina o debate cultural de todo o país, um fenômeno pop que parece jogar sal sobre uma série de feridas abertas na mesma intensidade de “Formation”, canção lançada por Beyoncé há dois anos, no calor da campanha eleitoral que acabaria levando Donald Trump à Casa Branca.

Mas enquanto a cantora, usando um uniforme que lembrava os que vestiam militantes dos Panteras Negras, fez de sua canção um hino de autoafirmação, Glover criou um lamento triste, desesperançado.

“This Is America” parece falar de um país que perdeu o chão e vem perdendo batalhas, em especial no combate à brutalidade policial e no uso desregrado de armas de fogo.

Seu pano de fundo também é outro. No lugar da resistência a Trump orquestrada por Hollywood e setores mais liberais da população, Glover parece entrar numa queda de braço com outro astro negro.

Enquanto ele brilha, Kanye West desperta o ódio, dizendo que séculos de escravidão no país foram “uma escolha” e se desfazendo em elogios a ninguém menos que o mais polêmico presidente americano.

Um dos nomes mais influentes da cultura pop do país, West diz que o racismo não é um problema tão grave, caso contrário não viveria na América. Mas também revelou há pouco ter comprado terras para construir uma comunidade alternativa, onde quer criar um novo estilo de vida.

West, talvez até sem querer, glamoriza a segregação, chegando a minimizar o legado de figuras históricas como Martin Luther King e Malcolm X, quando outros vêm lutando há décadas contra a desigualdade racial que asfixia o país.

No último episódio de “Saturday Night Live”, mais tradicional humorístico da TV americana, Glover, que lançou ali sua canção, satirizou declarações recentes de West, que então reagiu no Twitter, rede social que se tornou a maior praça pública deste país, com uns rostinhos chorando de rir.

Mas nada tem graça agora, e a última cena do clipe de “This Is America”, em que Glover foge de algozes por um beco escuro, só os seus olhos e dentes brancos brilhando na penumbra, não deixa nenhuma dúvida sobre o mal que corrói essa nação. Isto é a América.

 

AS REFERÊNCIAS NO CLIPE

Massacres O culto às armas de fogo, embaladas com liturgia após servirem a matanças, cita massacres e a reação social

Racismo A desigualdade racial aparece na pose que imita Jim Crow, estereótipo racista criado no embalo do fim da escravidão

Religião Apartado da cena principal, um coro primeiro entretém, mas depois entedia; o povo (ou a opinião pública?) só se engaja após uma matança

Alienação Jovens ao celular e uma Estátua da Liberdade tão plácida quanto passiva (na pele da rapper Sza) ilustram uma sociedade anestesiada em meio à barbárie

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