As declarações confusas e grosseiras do presidente Jair Bolsonaro sobre a Ancine serviram, ao menos, para dar visibilidade maior a um assunto árido: a legislação sobre a indústria audiovisual.
Com exceção da mídia especializada, os temas ligados à regulação de cinema, televisão e, agora, internet, raramente merecem destaque maior em veículos de interesse geral. São assuntos complexos, difíceis de explicar, chatos e, por isso, considerados sem apelo para o leitor ou espectador comum.
As infinitas possibilidades de negócios pela internet não estão previstas, naturalmente, em legislações importantes que têm mais de 20 anos.
No Brasil, no caso do cinema e da televisão, dois marcos legais fundamentais (a medida provisória de 2001 que criou a Agência Nacional do Cinema e a lei de 2011 que trata da TV por assinatura), mesmo já tendo sido remendados, não dão indicações claras sobre como lidar com o mundo digital.
A falta de regulação específica é sempre citada como uma das razões que explicam o crescimento de empresas como a Netflix nos últimos anos. E é também o que aflige diferentes grupos concorrentes
estrangeiros, tanto os que atuam na produção de conteúdo quanto os que distribuem, as chamadas operadoras.
A Ilustrada expôs na última quinta-feira um bom esboço da situação. Tanto a reclamação de um importante executivo da WarnerMedia, registrada por Nelson de Sá, quanto a análise de Ana Paula Sousa, deixam claro que há problemas graves a serem resolvidos com urgência em matéria de legislação.
Um dos problemas-chave é a proibição que empresas produtoras vendam conteúdo de seus canais diretamente ao consumidor, sem intermediação das operadoras de TV paga.
Outra questão essencial é a extensão, ou não, às empresas que oferecem serviços de streaming da exigência de pagamento de um tributo, a Condecine, que se tornou fonte essencial para o financiamento da indústria audiovisual brasileira.
Os interesses envolvidos são muitos e conflitantes, claro.
Uma questão de fundo, como observa Ana Paula, é não perder de vista como todas essas questões podem afetar a propriedade intelectual e o conteúdo brasileiros. Na visão da articulista, preservá-los é uma decisão política.
É importante registrar que a preocupação com o conteúdo nacional não aflige só brasileiros. Legisladores em diferentes países têm se questionado sobre como conciliar as facilidades oferecidas pela revolução digital com a necessidade de oferecer condições justas de competição aos diferentes agentes atuando no mercado.
Nesta semana, por exemplo, o jornal The Sydney Morning Herald mostrou que o governo da Austrália, de centro-direita, está considerando criar mecanismos que forcem empresas como Netflix a produzirem mais conteúdo australiano. A discussão surgiu após um questionamento da agência reguladora de concorrência e defesa dos consumidores australiana, a ACCC.
A reportagem cita o ministro das Comunicações, Paul Fletcher, fazendo o seguinte questionamento: “Do ponto de vista da concorrência, se você tem empresas que, essencialmente, estão competindo pela atenção dos australianos, a pergunta que a ACCC está fazendo é: Por que há um conjunto de normas destinado a uma parte dessas empresas, mas não à outra parte?”.
Parece uma boa pergunta. O debate sobre legislação de cinema e televisão interessa, e muito, aos espectadores e consumidores.
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