No intervalo de seis dias, na semana passada, desenhou-se com mais clareza do que o habitual a forma com que o presidente Jair Bolsonaro entende liberdade de expressão e relacionamento com a mídia. O estopim foi a exibição, no dia 29 de outubro, de uma reportagem no Jornal Nacional que associou o seu nome às investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco.
Ainda na terça, perto do fim da célebre live no Facebook em que ameaçou não renovar a concessão da TV Globo, Bolsonaro recebeu um bilhete de alguém que o auxiliava, pôs os óculos para ler e disse: “Em 20 minutos entra o Jornal da Record, tá OK. E a gente volta a conversar”.
Em seguida, tirou os óculos e repetiu: “Daqui a pouco tem Jornal da Record. Peço que vocês assistam. Me desculpem a maneira como, exaltado, chego no limite, sou ser humano, tenho filhos, filhos meus sofrendo por causa da TV Globo”.
Já passava das 4h da manhã em Riad quando Bolsonaro entrou ao vivo no telejornal da Record, entrevistado pelo jornalista Thiago Nolasco. “TV Globo, acabou a mamata de bilhões por ano para vocês. Vocês vão ter que renovar a concessão de vocês em 2022. Não vou persegui-los, não”, disse.
“Vocês têm que estar direitinho. Não dever nada para ninguém para que essa concessão venha a ser concedida para vocês, como para qualquer outro rádio ou televisão.”
Dois dias depois, em entrevista por telefone a José Luiz Datena, no Brasil Urgente, na Band, Bolsonaro disse: “Tem que haver liberdade de imprensa. A Globo falou demais anteontem, levou pancada. Meu filho agora falou em AI-5, tá levando pancada. A liberdade tem que ser ampla, geral e irrestrita. Ponto final”.
Em seguida, revelou ter determinado o cancelamento das assinaturas da Folha no governo federal. “Eu não quero mais saber da Folha de S.Paulo, que envenena o meu governo a leitura da Folha de S.Paulo”, disse.
À noite, em nova live, repetiu as críticas à Globo e à Folha e sugeriu: “Eu teria vergonha se eu fosse um grande empresário no Brasil de anunciar qualquer coisa na Globo”. E acrescentou: “E, quem anuncia na Folha de S.Paulo, presta atenção”.
No dia seguinte, foi a vez do filho do presidente, Eduardo, ganhar espaço no programa de Ratinho, no SBT. Generoso, o apresentador estimulou o deputado a criticar a Globo. “Você acha que setores da mídia fazem isso para desacreditar o presidente? Toda essa perseguição.” “Tenho certeza”, respondeu.
“Me falaram que você falou do AI-5”, disse Ratinho. “É exatamente onde eu queria chegar, usar o espaço que o senhor está gentilmente me cedendo para falar, para dizer que de maneira nenhuma eu cogitei retornar o AI-5. Talvez eu tenha sido um pouco infeliz de ter citado o AI-5. Se eu pudesse voltar atrás, eu não teria falado do AI-5, porque eu acabei dando munição para a oposição ficar me metralhando.”
A semana terminou com nova entrevista de Bolsonaro a Thiago Nolasco, agora em Brasília. O repórter quis saber se o presidente considerava o caso encerrado. Não, disse o presidente. “Porque não pode uma emissora de televisão, como a Globo, jogar um balde de coisa suja em cima de mim, naquela matéria da semana passada, e depois fica por isso mesmo. Não.”
Com base apenas nessas manifestações públicas, é difícil distinguir o que há de ameaças reais em meio a bravatas. O que resta claro é que o presidente entende como positivo expressar a sua visão da mídia como um território dividido entre “inimigos” e “aliados”.
Record, SBT e Band ajudaram a reverberar ofensas, ameaças e pressões à Globo, sem fazer contraponto. Datena, registre-se, pontuou a decisão de cancelar assinaturas da Folha com uma pergunta: “Mas não é uma forma de censura isso, presidente?”.
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