Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Descrição de chapéu Televisão

'Rota 66' é uma adaptação exemplar, mas tímida ao falar sobre a mídia

Série do Globoplay aproveita o mais impressionante do livro de Caco Barcellos sem a preocupação de ser literal

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Trinta anos depois de sua publicação, "Rota 66 - A História da Polícia que Mata" permanece como um livro essencial, um exemplo do que de melhor o jornalismo é capaz de produzir.

Caco Barcellos, um dos meus heróis na profissão, apresenta neste trabalho o resultado de uma pesquisa minuciosa sobre a letalidade da Rota, uma unidade da Polícia Militar de São Paulo, entre 1970 e 1992. São números equivalentes à de conflitos armados entre nações, motivo pelo qual o jornalista se considera um "correspondente de guerra".

Humberto Carrão, ator
Humberto Carrão vive o repórter Caco Barcellos na série 'Rota 66', produção da Boutique Filmes para o Globoplay - Aline Arruda - Vans Bumbeers/Divulgação

O estudo mostra que o número de pessoas sem antecedentes criminais mortas pela polícia é igual ou superior ao dos mortos que já tinham ficha criminal. Mostra ainda que as vítimas da PM naquele período, em sua grande maioria, eram jovens pobres e pretos. E que os crimes ocorrem, basicamente, nos bairros da periferia da cidade.

Caco dá nomes à tragédia. Desce literalmente aos porões do Instituto Médico Legal. Esmiúça dezenas de casos, ouve os parentes próximos das vítimas, descreve detidamente as perfurações nos corpos dos mortos. Ao mesmo tempo, aponta os padrões dos crimes e identifica os nomes dos maiores matadores da PM.

O que não está dito no livro, mas qualquer leitor percebe sem dificuldade, é que não basta persistência e faro jornalístico para fazer uma pesquisa como essa. Essas qualidades muitos bons jornalistas têm. É preciso coragem. Não qualquer coragem. Muita coragem.

E só faz um trabalho desses quem enxerga que o jornalismo pode ter um efeito transformador na realidade. Caco é desse time.

Reli o livro esta semana sob o efeito dos primeiros quatro episódios de "Rota 66 - A Polícia que Mata", do Globoplay. São oito no total. Ainda corro o risco de queimar a língua, mas vou dizer: é um trabalho de adaptação exemplar, brilhante mesmo.

O livro está todo lá, na essência, ainda que bastante editado. Criada por Maria Camargo e Teodoro Poppovic, com direção artística de Philippe Barcinski, a série aproveita tudo de mais impressionante da obra, mas sem a preocupação de fazer uma adaptação literal. Os roteiristas ignoram a cronologia de alguns casos e alteram pequenos detalhes de várias histórias não por apelação, acredito, mas para tornar o resultado mais compreensível.

Um acréscimo importante na série é a inclusão de algumas passagens da vida privada de Caco Barcellos. Discretíssimo, o jornalista não fala de si no livro. Já o espectador acompanha as suas peripécias com um filho recém-nascido e as dificuldades com uma namorada. Citado brevemente no livro, o repórter Octávio Ribeiro, o Pena Branca, um guru de Caco, ganha bom destaque na série.

Enxerguei alguma timidez na abordagem de um problema que o livro trata de forma bem clara —o papel da mídia na história desta polícia que mata.

Uma fonte essencial da pesquisa de Caco foi o jornal Notícias Populares, porque reproduzia, sem questionar, a versão policial sobre as mortes na periferia. Também muito citado no livro, por engrandecer a atuação dos PMs, o radialista Afanásio Jazadji ganhou um outro nome e um papel menor na série.

Humberto Carrão está muito convincente no papel de Caco. Criou um jornalista introspectivo, tímido, mas destemido, que fala com os olhos. O Globoplay não divulgou o valor do orçamento, mas "Rota 66" é nitidamente um investimento acima da média, com muitas locações e cenas ambientadas nas décadas de 1970 e 1980, e produção de alta qualidade, da Boutique Filmes.

A constatação óbvia é que se trata de um tema, infelizmente, atualíssimo. A polícia que mata funciona à base de incentivos dos chefes e a complacência de diferentes instâncias de apuração e julgamento dos casos.

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