Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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A cidade dos cachorros

Os pets, quem diria, estimulam as pessoas a ocupar os espaços públicos e a exercitar a sociabilidade em São Paulo

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Mel, Thor, Nina, Luke, Luna, Bob, Meg, Fred, Amora, Billy, Lola, Marley, Belinha, Theo, Maya, Nick, Cacau, Zeus, Pandora e Max.

Esses são os nomes mais comuns de cachorros no Brasil, de acordo com o PetCenso 2020. O recenseamento de humanos está atrasado, mas o censo –e o mercado– de pets registra crescimento. São 139 milhões de pets no Brasil, desde peixes até gatos, passando por cobras, hamsters e papagaios; porém quem domina a paisagem das cidades são os cachorros. Em São Paulo, de acordo com a prefeitura, 35% dos lares têm pelo menos um cachorro.

Se esse assunto parece estranho numa coluna sobre a cidade, considere o efeito dos cachorros no nosso cotidiano.

Em primeiro lugar, os pets nos estimulam a sair de casa. Eles estão por toda parte, sendo levados –e muitas vezes levando– seus donos para passeios, uma, duas ou mais vezes por dia. Esse exercício diário aumenta o contato com outras pessoas. O influente pesquisador de espaços públicos americano William Whyte chamou esses encontros de triangulações. É comum duas pessoas estarem caladas lado a lado numa praça ou numa calçada. Quando surge uma distração –um músico, um pipoqueiro ou um cachorro– o triângulo se completa e uma conversa se estabelece.

Os cães também estão ajudando a dar novos usos aos espaços públicos. Na pracinha do bairro, o parquinho das crianças e a mesa de dominó dos velhinhos estão ganhando a companhia das áreas exclusivas para os pets –os chamados “parcães”. Descobri que já existem 103 cachorródromos nas praças e cinco nos parques municipais –Aclimação, Buenos Aires, Burle Marx, Linear Mongaguá e Vila do Rodeio. É comum essas serem as áreas mais frequentadas e onde acontecem as conversas mais animadas.

Uma pesquisa feita pelo instituto de pesquisa Provokers para a Petlove mostrou que nem todos os donos de cachorro são iguais. De um lado, há os apaixonados, aqueles que chegam a dormir ao lado de seus cães, e de outro, os pragmáticos, que possuem uma relação afetiva, mas um pouco mais racional com seus pets. Dão comida, afeto e muitas vezes dividem alguns trabalhos com profissionais –como os passeadores. Esses são aqueles seres humanos valentes que levam 5 ou 10 cachorros, andando até 25 km a pé num dia, conciliando roteiros para buscar e deixar os bichinhos. Muito deles começam a ser acionados agora através de novos aplicativos, que oferecem menus completos de serviços, como veterinários, hotel, adestramento e até monitoramento via GPS.

Segundo a pesquisa, a pandemia acentuou a tendência de “humanização” dos pets. Com menos visitas em casa, é natural imaginar que o cachorrinho tenha ganhado mais carinho e mais agrados: comida orgânica, produtos de beleza e roupinhas que combinam com a do dono. Menos natural é constatar que um cachorro, o labrador Bono Surf Dog, tenha ganho 200 mil seguidores no Instagram depois de surfar na pororoca do Amazonas ou que os coreanos agora possam abrir contas de poupança para seus pets num banco em Seul.

Os pets mexem com a economia e a economia mexe com São Paulo, que ganhou centenas de lojas nas ruas, não apenas as gigantes, mas principalmente as pet shops e os “banhos & tosa” de bairro, que estimulam a vitalidade das ruas e o comércio local. Até nas bancas é comum ver pacotes de jornal velho sendo vendido para pets. Numa constatação algo melancólica para quem produz informação, o preço do jornal para o xixi canino é quase o mesmo daquele para quem se dispõe a lê-lo.

Nem tudo que o pet faz na rua é bom. Ao contrário, os conflitos estão por toda parte, muitas vezes por culpa de seus próprios donos: o sujeito que leva um cão feroz sem focinheira para a praça, o cachorro que late sem parar na casa vazia, e, claro, aqueles que se recusam a recolher o cocô do seu filhinho canino.

Para esses, existe até uma lei que obriga o recolhimento das fezes, mas é uma daquelas leis difíceis de pegar, porque é necessário que a polícia faça a retenção do cidadão e solicite documentos para que, aí sim, uma autoridade sanitária possa lavrar auto de infração e multa. Para convencer os recalcitrantes, recomendo o meme contundente que recebi de um amigo cadeirante: “cuidado, o cocô do seu cachorro vai parar nas minhas mãos”.

Um último ponto da pesquisa me chamou a atenção: os pets aumentam a nossa empatia. Eu constatei isso na prática. Quando meus filhos eram pequenos, Nino, um saltitante fox paulistinha, chegou e transformou a vida deles –e a minha, com sua demanda por carinho, comida, passeio e atenção. Sua morte, nos braços do meu filho, foi um momento de intensa tristeza e lindas lembranças. Ele nos incentivou a explorar a cidade, sair pelas ruas e conversar com desconhecidos, mas principalmente nos ensinou a dar e receber afeto, aquele afeto incondicional e inexplicável que os cachorros parecem ter pelos seus amigos humanos.​

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