Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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'A minha cidade melhora um pouquinho a cada dia. E a sua?'

O aniversário de São Paulo passou, as idiossincrasias permanecem

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No dia do aniversário da cidade, dia 25 de janeiro, todos os clichês saíram do armário e foram usados com liberalidade. "A cidade que não para." "A terra da garoa." A esquina da São João com a Ipiranga. Até a ponte estaiada apareceu em reportagens sobre nossas maravilhas.

A garoa acabou. Não temos mais o verde ao redor da cidade e agora vivemos entre os extremos das enxurradas e o calor do cerrado. A esquina da São João com a Ipiranga continua lá, mas a cena do bar Brahma ao lado das barracas de pessoas sem-teto não faz rima com alguma coisa que acontece no meu coração. A ponte estaiada é um anacronismo caro, que não permite a passagem de pedestres, ônibus ou bicicletas.

Mas, para além dos lugares e dos clichês, há as pessoas e é aqui que a cidade ganha suas verdadeiras feições. Dei uma longa volta no dia 25 e o que mais se vê é gente. Gente nas calçadas do Bixiga, no Ibirapuera, nas barracas da feira no Paraíso, nos calçadões do centro, nos pontos de ônibus, nos bares. É dessa energia vital que se move a cidade.

Pessoas lotam o parque Ibirapuera no aniversário de 468 anos da cidade de São Paulo - Eduardo Knapp - 25.jan.2022/Folhapress

A energia dos ativistas que brigaram para que o parque Augusta existisse, mas também dos criadores anônimos do parque do Canivete. Do pessoal que faz batalhas de poesia no centro, mas também do homem que plantou mais de 30 mil árvores e criou sozinho um parque na Penha. Dos empreendedores que construíram na Faria Lima um sofisticado teatro com a simpática baleia na frente, mas também dos fundadores dos Satyros, que restauraram o cine Bijou.

Pois bem, se a energia da cidade está nas pessoas e se cada uma busca uma coisa, como dar conta da diversidade? Diante da complexidade dessa salada de origens e vontades, o que se pode fazer para garantir que a individualidade continue florescendo enquanto a coletividade se fortalece? Como lidar com as grandes políticas públicas e como incluir a vida cotidiana nisso?

Uma pista pode estar na pesquisa da Rede Nossa São Paulo, que foi divulgada esses dias. Indagados sobre o que os atrai na cidade, os paulistanos citam as oportunidades, o mercado de trabalho e os serviços. Por outro lado, 57% dizem que se mudaria da cidade se pudesse. Mais da metade! Essa aparente contradição indica que há algo mais do que a busca de arranjar trabalho e ganhar dinheiro ou explorar oportunidades de crescimento.

A resposta talvez esteja na vida cotidiana. Em contraste com as grandes questões da cidade, a avaliação dos bairros nessa pesquisa está ligada a questões comezinhas: o medo da rua, a reclamação contra o barulho dos carros e das festas, a falta de áreas verdes.

Parece que no contraste entre as grandes aspirações e a faina diária reside a explicação para a vontade de deixar a cidade. Posso comer comida coreana a qualquer hora, mas me preocupo com a minha filha voltando de noite para casa. Gosto do burburinho do Carnaval mas não consigo dormir com o barulho do bar ao lado de casa. Curto a energia das pessoas na Paulista mas não conheço meu vizinho de porta.

É nesse contraste que reside a alma das grandes cidades. A maneira como lidamos com ele parece às vezes valorizá-la, às vezes sublimá-la, num frágil equilíbrio entre a urbe e a comunidade. Faz parte da complexidade das metrópoles, mas em São Paulo talvez a gente se ressinta da falta de rumo. Qual é o projeto de governo da cidade, afinal? Aonde queremos chegar? Nosso plano de metas fala de tudo, mas não escolhe prioridades.

Assisti há anos a uma palestra do urbanista dinamarquês Jan Gehl. Ao final, ele disse que o que importava era saber se, a cada dia, a cidade estaria melhorando um pouquinho na direção de uma escala mais humana.

Melhorar um pouquinho a cada dia. E aqui, será que estamos mesmo melhorando? Temos menos filas nos pontos de ônibus? Existem mais coisas interessantes para fazer com pouco dinheiro? Temos mais lugares bonitos para passear? Há mais vida na rua, vizinhanças integradas, crianças brincando nos espaços públicos? Estamos conseguindo dar mais dignidade à vida de quem mora nas periferias? Há esperança de melhorar?

Temo que a resposta a cada uma dessas perguntas possa explicar o fato de tanta gente dizer que ama a cidade e ao mesmo tempo espere por uma chance de ir embora. Lidar com a complexidade exige entender a diferença das escalas para chegar a um denominador possível. Viver individualmente a vida cotidiana e ao mesmo tempo acreditar num projeto coletivo, em que tudo pode melhorar, um pouquinho a cada dia.

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