Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Uma pequena retrospectiva urbanística de 2021

Os grandes arquitetos que se foram, os novos espaços públicos e os eventos que marcaram a vida de São Paulo

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1. Os construtores de cidades que se foram

Em 2021, morreram algumas das pessoas que ajudaram a moldar ou a inspirar a cidade em que vivemos.

Paulo Mendes da Rocha morreu aos 92 anos, em 23 de maio. Um dos dois únicos brasileiros a ganhar o Prêmio Pritzker, deixou algumas marcas incontornáveis em São Paulo. A reforma da Pinacoteca, de 1998, reconfigura um espaço histórico e o Sesc 24 de Maio, de 2017, é um exemplo lindo de integração com as ruas do centro. Em outro extremo, a marquise da Praça do Patriarca, de 2002, é um projeto que não causa admiração. Além de suas obras, porém, o arquiteto foi um defensor eloquente e inspirador da cidade para as pessoas, do papel social da arquitetura e da vivência cotidiana.

Arquiteto Paulo Mendes da Rocha
O arquiteto Paulo Mendes da Rocha - Divulgação

Jaime Lerner morreu aos 83 anos, em 27 de maio. Foi um dos urbanistas mais importantes da história, com influência direta e indireta no planejamento de várias cidades pelo mundo: o desenvolvimento urbano a partir dos eixos de transporte —que inspirou desde os BRT´s pelo mundo afora até o conceito do plano diretor de São Paulo— a preocupação com as áreas verdes, a caminhabilidade, a vitalidade do centro e a vida pública. Seu maior legado, porém, foi o de transformar em ações práticas o encantamento com a vida urbana e a rua, uma inspiração poderosa para qualquer candidato a prefeito, de qualquer cidade.

Ruy Ohtake morreu em 27 de novembro, aos 83 anos. Alguns de seus edifícios recriam a —e destacam-se na— paisagem de São Paulo, como o hotel Unique ou o Centro Cultural Tomie Ohtake. Nos famosos predinhos redondos de Heliópolis, o arquiteto recebeu o desafio de um líder comunitário, exercitou a conversa com a comunidade local e acompanhou durante anos o uso do espaço público ao redor dos prédios.

Richard Rogers, o arquiteto ítalo-inglês também laureado com o Prêmio Pritzker, que desenhou o Centro Georges Pompidou, morreu em 18 de dezembro, aos 88 anos. Sua importância vai muito além das muitas obras, principalmente pelo livro "Cidades para um pequeno planeta", de 1997. Nele, Rogers enuncia conceitos que ecoam nos planos urbanísticos das grandes cidades de hoje: o planejamento sustentável, a responsabilidade perante as gerações futuras, a importância da cidade compacta para diminuir os deslocamentos e a dependência do carro, a pluralidade e a coesão social.

2. São Paulo

Na gestão municipal, a morte de Bruno Covas em 16 de maio, a poucos meses da posse, foi um desafio ainda não superado para a cidade. O esforço declarado do novo prefeito, Ricardo Nunes, foi o de tocar a gestão sem perda de continuidade. A cidade ganhou alguns espaços e perdeu pelo menos duas chances de discutir seu futuro.

​Novos e velhos espaços públicos

Após o auge da pandemia, a boa notícia foi a reabertura gradual dos parques e da Paulista, a partir de julho e agosto. As pessoas, ressabiadas a princípio, estão de volta, e percebem como o zoom não substitui o encontro real.

Quatro anos e meio depois do incêndio, um dos museus mais interessantes da cidade, o Museu da Língua Portuguesa, de responsabilidade do governo estadual, voltou a funcionar em 31 de julho.

Inaugurado em 6 de novembro, o Parque Augusta é um exemplo de integração com o entorno. Encravado numa região densa do centro, é um pequeno oásis, um sucesso de gente desde o primeiro dia. O fato de o parque ter saído do papel demonstra o poder de articulação dos defensores do parque, que pressionaram o poder púbico por mais de 20 anos até conseguir que o município bancasse a compra da área por meio dos certificados de transferência do direito de construir.

Inaugurado oficialmente em 6 de dezembro, o novo Anhangabaú despertou polêmica desde o início das obras, pelo custo —mais de R$ 100 milhões—, pelo modelo de concessão e pelo novo projeto —a esplanada cívica. É um espaço amplo e aberto, com acesso fácil de metrô, que comporta multidões. As centenas de fontes luminosas prometem ser uma atração bonita, com cores e desenhos que redistribuem e quebram a monumentalidade. Para os grandes eventos, como a Virada Cultural ou shows, está ótimo. Como espaço público, porém, vai precisar de mais atenção no dia a dia e integração com os dois lados do vale para ir além.

​Planos urbanísticos

A mais importante notícia de 2021 no urbanismo é uma não-notícia. Depois de meses de pressão, a revisão do Plano Diretor, prevista desde sua promulgação, foi adiada. O adiamento foi comemorado com algum alarde por movimentos contrários à discussão durante a pandemia e talvez tenha sido um alívio para a prefeitura, mas o fato é que temos um plano que está andando sem nenhum diagnóstico do que está dando certo ou errado. Perdemos um ano que poderia ter sido útil para decidir correções de rota e a discussão no ano que vem corre o risco de se transformar num verdadeiro novo plano, rediscutindo princípios que já foram decididos 8 anos atrás.

Vista do aeroporto Campo de Marte, com o bairro da Casa Verde ao fundo
Vista do aeroporto Campo de Marte, área da qual a Prefeitura de São Paulo abriu mão em troca do perdão da dívida com o Governo Federal - Divulgação/Infraero

No final do ano, a Prefeitura anunciou um acordo polêmico para o Campo de Marte. Em troca do perdão da dívida municipal, a cidade abre mão de tomar posse do terreno, que foi tomado pela União ainda no Governo Getúlio Vargas. A decisão faz com que a cidade abra mão de uma área gigante, próxima do centro, capaz de abrigar um vetor de crescimento e um novo bairro inteiro na zona norte, em troca de um fôlego financeiro no curto prazo. Questionável sob vários aspectos, a medida que privilegia o fluxo de caixa sobre o futuro da cidade foi aprovada na Câmara com pouco ou nenhum debate.

Enquanto os PIU´s, um instrumento de planejamento urbano previsto no Plano Diretor ainda estão sendo discutidos sem conseguir ser ainda o indutor de mudanças prometido, foram aprovados o Requalifica Centro, um necessário plano de retrofit dos imóveis do centro e o Ruas SP, que talvez tivesse sido mais imperativo no auge da pandemia e hoje corre o risco de se tornar apenas uma regularização do uso dos antigos parklets que eram espaços públicos, como extensões de restaurantes.

Os efeitos duradouros da pandemia

Se o pico da pandemia foi entre março e julho de 2021, seus efeitos ainda vão perdurar pelo ano que vem. A redução de deslocamentos, o aumento do trabalho remoto, a explosão do e-commerce trouxeram consequências visíveis na cidade. O delivery mudou a feição da mobilidade e dos serviços. Há mais motos entregando desde carregadores de celular a hambúrgueres gourmet. Pressionados pelo tempo e pelo sistema de remuneração, e estimulados pela falta de fiscalização, estão se envolvendo em mais acidentes, causando mais infrações e colocando pedestres em risco. Milhares de pequenos comércios e bares fecharam. O número de moradores de rua cresceu a olhos vistos, atingindo aproximadamente 30 mil pessoas que vivem sob os viadutos ou em barracas.

O desafio em 2022 será lidar com essas grandes questões e ainda o Plano Diretor, o centro, a prioridade para o transporte coletivo e a desigualdade, sem ignorar as questões aparentemente pequenas que ganham ares épico, como o Touro de Ouro da Bolsa, o incêndio da estátua do Borba Gato, ou o Carnaval. A complexidade de São Paulo é um teste constante para gestores e moradores. Bom ano para todos!

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto afirmava incorretamente que Paulo Mendes da Rocha foi o único brasileiro a vencer o Prêmio ​​Pritzker. Oscar Niemeyer também foi ganhador.

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