Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Dark kitchens são risco para a cidade e para as relações pessoais

Se os consumidores querem e os donos de restaurantes querem, qual é o problema dessas cozinhas industriais?

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A convivência entre residências e restaurantes nunca foi muito fácil. Restaurantes grandes trazem manobristas, fornecedores, clientes falando alto na rua, cheiro da cozinha, barulho de geradores e geladeiras. Os novos modelos das dark kitchens, porém, embutem desafios e riscos ainda maiores.

Dark kitchens são aquelas cozinhas industriais que atendem à demanda de pedidos do delivery, mas que não atendem clientes. Elas produzem a comida que os entregadores vêm buscar.

Foto aérea de casas e pequenos prédios
Fotos aéreas de uma dark kitchen, que fica localizada rua Clélia, em São Paulo - Eduardo Anizelli - 2.jul.2021/Folhapress

Se há demanda e há oferta, qual é afinal, o risco desse novo modelo de negócio?

Risco de precarização e destruição de valor

O primeiro risco é a perda das ligações pessoais e a precarização. O chapeiro não conhece o cliente. O entregador não conhece a cozinheira. O garçom, o maître, o caixa e o gerente deixam de existir. No lugar de vários empregados, poucos terceirizados, lutando para conseguir atingir uma renda mínima, com poucos direitos e muita pressão. No lugar de um restaurante, um galpão industrial abafado que chega a acomodar até 30 marcas de restaurantes diferentes. No lugar de clientes na porta, uma multidão de motoqueiros esperando as sacolas. No lugar de um prato de porcelana, uma pilha de embalagens de plástico.

O outro risco é a destruição de valor de uma cadeia econômica. Ao deixar para os aplicativos a parte mais importante do negócio, os restaurantes se precarizam. Em vez de criar um ambiente agradável para os clientes e uma boa experiência, os donos de restaurantes passam a lutar para conseguir uma boa posição nos aplicativos do Rappi ou do Ifood.

Esses aplicativos, por sua vez, ganham poder. Com o potencial de se tornarem oligopólios e oligopsônios ao mesmo tempo, assumem poder de comandar os preços. De um lado, pressionam os restaurantes a diminuírem suas margens e mexem em seus menus. De outro lado, começam a ter o poder de aumentar os preços aos clientes fidelizados. Quer esfiha no meio do jogo do Brasil? Pague mais.

Mesmo com tudo isso, as dark kitchens parecem ter vindo para ficar. Consumidores estão confortáveis em apertar um botão para ter seu hambúrguer entregue em casa. Para quem empreende, elas são muito mais baratas do que operar um restaurante. Numa área menor e sem clientes, o custo fixo é menor e o dono do lugar não precisa se preocupar com o serviço, guardanapos, talheres, pratos e a decoração. E não é apenas pizza, sanduíches ou comida árabe. Até restaurantes que primavam pela comida esmerada —e cara— estão aderindo. A Vinheria Percussi, por exemplo, tinha 27 funcionários no imóvel em Pinheiros. O restaurante fechou e hoje, com apenas sete pessoas o negócio funciona.

Diante da inevitabilidade da sua presença, a Prefeitura propôs e a Câmara aprovou uma lei que tenta regulamentar essa nova atividade.

A lei das dark kitchens

As dark kitchens operavam numa espécie de limbo jurídico, um hiato não coberto pela legislação, em concordância, talvez com a própria tradução do termo: cozinha escura, fantasma, invisível. Agora, já há uma lei que começa a regular a atividade, a lei 17.853 aprovada pela Câmara dias atrás, em 29 de novembro.

Pela nova lei, as dark kitchens terão que contar com exaustores apropriados, higiene e um espaço mínimo para os empregados. Hoje, é comum que cada grupo trabalhe num box fechado, sem luz ou ventilação. Elas terão também que oferecer banheiros para funcionários e entregadores, que hoje fazem suas necessidades até na rua.

Outras regras dizem respeito à ocupação do espaço público: não é permitido estacionar as motos nas calçadas, não é permitido fazer barulho acima do nível estabelecido para a região, não é permitido reservar vagas na rua. Essas mudanças são tão óbvias que já deveriam estar sendo fiscalizadas, mas é claro que não estão, como sabe qualquer morador que tem o azar de ser vizinho desses lugares.

Vai ser preciso intensificar a fiscalização, algo que está difícil com os 300 fiscais existentes na cidade. Conversei com o secretário da Casa Civil Fabrício Cobra e ele conta que a Prefeitura vai abrir um edital para contratar 500 novos fiscais. É uma notícia que pode, em tese, fazer com que leis que já existam comecem a ser cumpridas, mas o caminho para integrar as dark kitchens à vida urbana deve trazer algumas idas e vindas nos próximos anos.

Um jabuti na lei

Apesar de a Prefeitura negar o jabuti, ele apareceu.

No meio da lei que regula o funcionamento das dark kitchens foi incluído —e aprovado— um artigo que estipula o nível de ruído máximo para os "grandes eventos" em São Paulo.

A partir de agora, shows como o Lollapalooza, por exemplo, podem emitir até 75dB. O número é quase 30% acima do atual e entra no patamar de risco à saúde. A justificativa é que hoje os promotores de show estão operando graças a liminares.

Que seja, mas por que esconder a regulamentação? Moradores ao redor do Allianz Park ou do Autódromo de Interlagos, por exemplo, ganham mais um desconforto e a Prefeitura perde a chance de explicitar um problema e dar chance de uma discussão mais democrática para um assunto tão importante.

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