Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Descrição de chapéu réveillon

A torcida argentina, o Réveillon e o Carnaval: a efervescência coletiva da multidão

Nos espaços públicos das grandes cidades, as comemorações contam sobre o grau de coesão de cada sociedade

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Menos de um mês atrás, quando a Argentina foi campeã mundial, alguns vídeos mostravam as pessoas em Buenos Aires saindo das casas, na expectativa do último pênalti. Antes mesmo de a bola ser chutada, elas já estavam a postos nas ruas, intuindo a comemoração que viria.

Não importava ver a bola entrando. Importava estar na rua, gritar na rua, abraçar o conhecido e o desconhecido na rua. A catarse argentina impressionou o mundo e trouxe cenas de alegria explícita numa escala rara. Quando 5 milhões de pessoas se juntaram na esquina da 9 de Julio com Corrientes, o veículo que levava os jogadores não conseguiu nem chegar perto do Obelisco, barrado pela comemoração dionisíaca de abraços, gritos e cantos —como cantam os argentinos!

Multidão celebra vitória da Argentina na final da Copa do Qatar nos arredores do Obelisco, em Buenos Aires - Tomas Cuesta - 18.dez.2022/AFP

Uma das coisas que mais me chamou a atenção nas cenas de Buenos Aires foi a naturalidade com que a massa de gente foi chegando para a festa. Sem convite oficial, sem RSVP, a turma chegou e tomou posse do espaço público, como se estivessem em casa. De certa forma, estavam —as grandes comemorações acontecem ali, ao redor do Obelisco, construído para marcar o quarto centenário da primeira fundação da cidade. O detalhe: todo mundo de uniforme azul e branco, soterrando temporariamente suas diferenças clubísticas, de idade, políticas, religiosas.

Na rua, a comemoração nos une. Num mundo em que cada um precisa ser individual e único, ir para a rua e se igualar ao outro é reconhecer que temos alguma coisa em comum. A ligação entre as pessoas que coabitam a mesma cidade tem um quê de religião —não por acaso, palavra que vem de religar, religare, em latim.

Ilustração de Mauro Calliari mostra a festa da Copa-22 em Buenos Aires
Ilustração de Mauro Calliari retrata a festa da Copa-22 em Buenos Aires - Mauro Calliari

O fenômeno é raro e até efêmero, mas é muito poderoso. O sociólogo francês Émile Durkheim cunhou um nome para ele: efervescência coletiva. É quando uma comunidade se junta para manifestar um mesmo sentimento e participar coletivamente de uma mesma ação. Mais do que um momento de alegria (que sentimos quando estamos em qualquer grupo), trata-se de um evento que vai além da excitação individual. Ele serve para unir a sociedade, emulando experiências que em outras épocas talvez fossem conseguidas pelos rituais religiosos ou políticos das pequenas comunidades. É como se estivéssemos esperando esse ‘fato social’ para nos assegurar de que pertencemos a um grupo maior do que o nosso. Diante da perda gradual do poder organizador da religião e dos grandes eventos cívicos, o esporte e a música fazem as vezes de cola social.

O Carnaval brasileiro tem esse efeito, principalmente o Carnaval de rua. Durante poucos dias, em alguns momentos, a música, a cerveja, o desejo (por que não?) e a alegria de estar na rua fornecem a base para esse milagre temporário, da sensação de pertencimento que acomete a quem se deixar levar, aliado à supressão temporária das diferenças sociais.

Na noite de Réveillon, estive na avenida Paulista. Ali, ao contrário das cores das torcidas e das fantasias, o uniforme é o branco, que também tem esse efeito de neutralizar parcialmente as diferenças. A camiseta de algodão de R$ 35 convive com o vestido de grife de R$ 2.000. Os fogos embalam a alegria e, durante aqueles minutos, parecemos todos muito próximos. Aí, o ano começa, tudo parece ir voltando ao normal, mas algo permanece, um eco do que Durkheim chamaria de ‘o ser social’, a soma da consciência individual com a consciência coletiva.

Ilustração mostra torcedores argentinos festejando em Buenos Aires a conquista da Copa-22
Ilustração de Mauro Calliari mostra a festa da Copa-22 em Buenos Aires - Mauro Calliari

Num país tão desigual como o nosso, é importante poder sentir essa força que vem do uso simultâneo do espaço público, em ocasiões alegres —o eclipse da Lua que elevou olhares para o céu, o Círio de Nazaré, a peregrinação a Aparecida— e tristes —a morte de Pelé, a morte de Tancredo Neves e a morte de Ayrton Senna, que uniu a cidade de São Paulo ao longo das avenidas para receber o caixão e homenagear o homem.

Não dá para ignorar os sinais de que até essas festas estão mudando e que, de uma hora para outra, talvez não sejamos mais todos convidados. O Réveillon em Copacabana, antes um dos espaços mais democráticos do mundo, já inventou uma área VIP, cercada por tapumes que impedem a circulação das pessoas que não pagam. Mesmo no Carnaval de rua de Salvador, já há camarotes onde alguns poucos tomam seu uísque enquanto o povaréu se digladia na pipoca.

E o que dizer das manifestações destrutivas, mal-humoradas, sectárias? Bem, esse é outro assunto. A explicação para os hooligans que marcam brigas e extremistas que invadem prédios públicos provavelmente está mais na descrição do narcisismo das pequenas diferenças do que nessa ideia de efervescência coletiva, que preferiremos guardar para as manifestações que exalam alegria ou tristeza, mas não raiva e desejo de destruição.

Estamos numa encruzilhada. Diante da espantosa separação política, da natural perda da relevância da religião institucional, como é que vamos nos sentir parte de uma mesma sociedade? Faz sentido começar pela manutenção e reafirmação do simbolismo dos espaços públicos e coletivos. E se todo mundo acreditasse em algum projeto comum seria bem melhor, mas, infelizmente, falar em valores éticos e morais estruturantes, aí a coisa anda difícil.

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