Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Mauro Calliari

Caminhar e olhar para a cidade

Como treinar os sentidos para perceber o que estava invisível em nossos deslocamentos pela cidade.

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É muito comum a gente se entediar com os trajetos que fazemos cotidianamente. Passear com o cachorro, andar até o metrô, comprar pão na padaria, acompanhar o filho até a escola. A repetição dos mesmos trajetos, nos mesmos horários, pode ser enfastiante, um dia da marmota sem surpresa alguma. Ou pode ser uma pequena aventura.

Henri David Thoreau, o precursor do movimento ecológico, da desobediência civil e autor de um pequeno tratado sobre o caminhar dizia que "andar é a aventura do dia". É mais fácil entender a aventura para quem se embrenha num bosque à beira do lago Walden, como Thoreau, mas será que, na cidade, não conseguimos ter um pouco desse gostinho?

Uma inspiração para isso está no livro "On Looking" (algo como "Sobre o olhar"), da americana Alexandra Horowitz, que, mais de dez anos após o lançamento, continua original e instigante.

Morando em Nova York, mãe e dona de dois cachorros, a professora de psicologia se propôs a investigar maneiras de ver a cidade com outros olhos —e até sem os olhos. O seu método é simples: convidar pessoas com qualidades distintas para ajudar a distinguir aquilo que fica escondido quando caminhamos. São 11 caminhadas, cada uma com uma pessoa diferente. Uma artista, um terapeuta corporal, um geólogo, uma mulher cega, um engenheiro de som, um bebê e até um cachorro.

Ilustração de Mauro Calliari
Ilustração de Mauro Calliari - Mauro Calliari

Em cada passeio ela descobre um jeito novo de olhar para a cidade.

Andar ao lado de uma pessoa cega é uma experiência transformadora. O som da bengala batendo no chão reverbera de modo diferente a cada mudança no ambiente —a moça cega que ela acompanha percebe que há um toldo acima de suas cabeças apenas pelo eco. Um sopro de vento avisa que está chegando a um cruzamento. Buracos e obstáculos que nem percebemos precisam ser negociados.

O especialista em tipografia, ou seja, nas famílias das letras, ajuda a caminhante a navegar e se divertir com os milhões de placas que se vê nas ruas, o engenheiro de som explica por que alguns sons são agradáveis e outros fazem mal. Lá, como cá, os escapamentos das motos são os grandes vilões para os ouvidos.

A caminhada com Fred Kent é uma aula de urbanidade. Ele é o presidente do PPS, um centro de estudos inspirado nas pesquisas do mítico William White, que conduziu alguns dos mais detalhados estudos sobre os espaços públicos. Para surpresa da autora, ele se concentra não no fluxo da multidão, mas em tudo aquilo que torna o trajeto mais interessante. Eles param para apreciar vitrines, entradas, galerias, átrios e lojas. Eles sentam em bancos. Até o carrinho que vende hot-dog, que desperta a ira dos apressados, interessa: tudo o que promove o encontro é motivo de admiração.

Ilustração de Mauro Calliari
Ilustração de Mauro Calliari - Mauro Calliari

A cada passeio, um novo olhar, uma nova descoberta. O cachorro a faz pensar na nuvem de cheiros da metrópole, da urina à tinta dos grafites. O bebê ignora a escala dos prédios gigantes e se concentra naquilo que é realmente interessante: as pontas da grade de um canteiro ou o formato do hidrante.

Sua amiga artista a faz olhar para os transeuntes, entrar em lugares privados e, para horror de uma nova-iorquina acostumada a ficar na sua, conversar com estranhos!

A mensagem do livro é singela. Basta abrir os sentidos para ampliar os pontos de vista. Há uma miríade de coisas interessantes a serem percebidas mesmo nos passeios que já fizemos mil vezes.

Duas observações me vêm à cabeça depois da leitura.

A primeira é sobre a presença. É bom demais abrir os sentidos para a rua, ver gente, lugares, perceber sons e movimento. Às vezes, porém, naqueles dias estressados, uma volta no quarteirão pode ser apenas o oposto disso, a possibilidade de não pensar em nada e voltar mais sereno para casa.

A última observação é um pequeno alerta. Pessoas dirão que é um absurdo pensar na fruição do andar num lugar como o Brasil, violento e inseguro. É claro que há que se tomar cuidado com o trânsito e a ameaça de assaltos. Talvez se fosse escrito por um autor brasileiro, o livro tivesse uma caminhada ao lado de um especialista em segurança ou algo assim. Em uma cidade como São Paulo, a atenção redobra, também pela precariedade da infraestrutura. Uma vez acompanhei um casal de cegos por alguns quarteirões. Nesse pequeno trajeto, tremia a cada vez que os dois passavam perto dos tantos buracos, degraus, plantas com espinhos ou toldos mal colocados, que pululam em nossas ruas.

Sim, é preciso estratégia para andar nas nossas cidades, mas, querendo ou não, o andar é de longe o maior meio de transporte no Brasil e reconhecer isso só vai tornar melhor a vida na cidade. Além de mais seguro, como não pensar em meios de tornar o andar mais interessante?

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