Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Mauro Calliari
Descrição de chapéu São Caetano do Sul

A vida no térreo das cidades mais verticalizadas do Brasil

O avanço pouco inspirado dos prédios não se traduz em urbanidade nas calçadas

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As cidades brasileiras estão se verticalizando rapidamente. Agora já são 12% da população morando em apartamentos ante 8% no Censo anterior. O número não parece tão alto, mas afeta diretamente a vida urbana. Só para comparar, na Espanha, por exemplo, mais de 65% da população vive em apartamentos e as ruas têm vitalidade invejável.

E no Brasil, qual tem sido o efeito dessa mudança na vida cotidiana?

Santos, a cidade brasileira com mais gente morando em apartamentos

Hoje, 63,5 % dos santistas moram em prédios. A cidade vem se verticalizando há décadas e os prédios se integram razoavelmente bem com a cidade e seu patrimônio. Para começar, não há tantos edifícios em lotes gigantescos como em outras cidades. Na orla, há alguns belos prédios das décadas de 1950, 60 e 70 que se relacionam generosamente com as calçadas, com poucos murões ou grades.

Comércio sob prédios em Santos
Moradoras conversam diante de lojas sob prédios em Santos - Mauro Calliari

O prazer de andar a pé pela cidade conta com vários aliados. Um é o magnífico jardim que acompanha a orla, um respiro raro nas cidades praianas, com gente a qualquer hora do dia e até de noite.

Outro projeto urbanístico vem lá do começo do século 20, os canais concebidos pelo engenheiro Saturnino de Brito que, na origem foram uma preocupação sanitária mas que ganharam papel paisagístico e trazem arborização rara à cidade.

Galeria que liga uma rua a outra em Santos
Galeria que liga uma rua a outra em Santos - Mauro Calliari

Nas zonas comerciais, lojas ocupam térreos e a cidade tem um verdadeiro patrimônio nas galerias, que se imiscuem por dentro de prédios cortando os quarteirões.

Curiosamente, quase 3% dos habitantes da cidade moram nos famosos prédios inclinados, por conta do recalque das fundações que afundam no solo de areia fina e argilosa da beira-mar. São o testemunho da briga entre a tecnologia e o ambiente e um lembrete da finitude das construções.

Canal em Santos
Canal em Santos - Mauro Calliari

Balneário Camboriú, o espanto diante dos prédios gigantescos

Balneário Camboriú (57,2% das pessoas em apartamentos) é um caso inacreditável de urbanização. Desde que se separou de Camboriú, em 1964, a cidade vem se verticalizando, mas na última década as construções parecem estar competindo por recordes. Ali estão 6 dos 10 edifícios mais altos do Brasil, incluindo o One Tower, com 84 andares.

O efeito dessa verticalização é sentido nas primeiras horas da tarde, quando a sombra dos prédios tapa o sol na praia. Por outro lado, quem anda a pé encontra uma surpreendente vitalidade nas calçadas. Há restaurantes, bares, lojas e uma boa faixa para lazer na beira do mar. Para alguns urbanistas, o que importa é o térreo, não a altura dos prédios. Ou seja, vale continuar investindo no alargamento de calçadas e nas amenidades que acontecem embaixo dos edifícios gigantes.

Bicicletas em caçada de Balneário Camboriú
Clientes em bares nas calçadas de Balneário Camboriú - Mauro Calliari

O que vai acontecer a partir de agora é motivo de preocupação para gestores e urbanistas. Parte dos apartamentos é comercializada para investimento e alguns permanecem vazios. Os investidores, do porte de Cristiano Ronaldo e Neymar, competem pela cobertura mais alta. Os altos preços podem afastar parte da população para depois da estrada ou para outras praias. A cidade enche na temporada, mas perde diversidade no resto do tempo.

Comércio sob prédios em Balneário Camboriú
Comércio sob prédios em Balneário Camboriú - Mauro Calliari

São Caetano do Sul, a densidade do município com o melhor IDH do Brasil

São Caetano do Sul ultrapassou várias cidades na última década, saindo de 35% para 51% da população morando em apartamentos. O município, relativamente pequeno, já era um dos mais densos do Brasil e isso deve aumentar ainda mais.

Andando pela cidade a gente percebe o resultado do processo de desindustrialização. Os grandes lotes das antigas fábricas ao redor dos trilhos estão sendo transformados em grandes condomínios, mas o resultado do ponto de vista de urbanidade deixa a desejar. No bairro Cerâmica, por exemplo, o modelo é aquele de construções muradas ao redor de um shopping. As calçadas são dignas, há ciclovias, um pequeno museu num antigo forno e um parque –Tom Jobim– simpático, mas falta mistura social, falta atividade comercial na rua e sobram muros monótonos para os pedestres.

Pessoas descansam em calçadão em São Caetano do Sul
Pessoas descansam em calçadão em São Caetano do Sul - Mauro Calliari

Nos bairros mais antigos, os prédios irrompem em meio às casinhas trazendo muros, vagas de garagem e guaritas que se fecham ao entorno. Nas calçadas estreitas, funcionários de escritórios e lojas se aboletam nas poucas sombras para relaxar depois do almoço. Nada de praças, bancos ou amenidades.

A urbanidade da cidade deve resistir a isso. Apesar de estar na Grande São Paulo, São Caetano do Sul tem aura de cidade do interior, gente nas ruas, uma área pedestrianizada de altíssimo nível no centro, segurança e dinheiro. Agora, a prefeitura iniciou uma experiência importante para aumentar o acesso à cidade, a Tarifa Zero. Nos primeiros dois meses, mais que dobrou o número de passageiros do sistema de ônibus.

Pedestres caminham ao longo de muros em São Caetano do Sul
Pedestres caminham ao longo de muros em São Caetano do Sul - Mauro Calliari

No futuro mais vertical, onde estará a urbanidade?

Na velocidade em que estamos, é bem provável que muitos municípios ultrapassem a barreira dos 50% no próximo Cnso –São Paulo ainda não deve chegar a esse patamar tão cedo, mas, para o bem e para o mal, os apartamentos pularam de 24% para 29% das moradias em apenas dez anos.

É possível ter verticalização que traga benefícios para as cidades. A densidade significa proximidade de serviços e menos deslocamentos.

Mas, para melhorar a urbanidade, a receita é muito mais sofisticada do que construir prédios: é preciso aumentar a mistura de classes sociais, promover o uso misto, preservar o patrimônio histórico, aumentar a largura das calçadas, viabilizar alturas intermediárias (Paris não passa de oito andares e é muito densa), projetar bancos, pequenas praças, arborizar, construir pontos de ônibus confortáveis, aumentar a permeabilidade dos prédios, fiscalizar barulho e acabar com os grandes lotes murados.

As cidades protagonistas da próxima década serão aquelas que conseguirem unir poder Executivo e Legislativo, população e mercado imobiliário em torno da densidade mais inteligente e saudável. No cenário de hoje, provavelmente serão poucas.

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