Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg

A despedida

A falta de autonomia para escolher como viver é uma espécie de morte simbólica

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Recentemente, participei do debate sobre o filme "A Despedida" (2019), no Ciclo de Cinema e Psicanálise, promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e Museu da Imagem e do Som, com apoio da Folha.

O filme não é apenas sobre o direito de decidir o momento da própria morte, mas, principalmente, sobre o direito de escolher como viver com dignidade e autonomia até o fim dos nossos dias.

Susan Sarandon e Kate Winslet no filme 'A Despedida'
Susan Sarandon e Kate Winslet no filme 'A Despedida' - Reprodução

Sofrendo com uma doença degenerativa, Lily (Susan Sarandon) decide colocar fim à sua vida antes que a enfermidade a impeça de tomar qualquer decisão. O marido, as duas filhas e a melhor amiga se reúnem na casa de campo da família para acompanhá-la até o momento da sua morte.

Lily reage bruscamente quando tentam ajudá-la a subir a escada, a se vestir, a cozinhar e em outras atividades que ela ainda se sente capaz de fazer sozinha.

A frase que a protagonista mais repete no filme é: "Eu consigo".

"Eu consigo" é quase um grito de Lily para preservar sua autonomia e independência. O filme é sobre a "morte física", mas, também, sobre uma "morte simbólica", pois Lily sabe que não conseguirá mais ser ela mesma e fazer as próprias escolhas de como quer viver e morrer.

O filme me fez lembrar da crônica "Despedida", de Rubem Alves, do dia 1º de novembro de 2011. Fiquei tão triste com a sua despedida da Folha que cheguei a chorar.

"Essa crônica é uma despedida. Resolvi, por decisão própria, parar de escrever no Cotidiano. Devo ter perdido o juízo. Minha decisão contraria um dos dois maiores sonhos de todo escritor. Primeiro, o sonho de ser um best-seller. O outro sonho dos escritores é ter seus textos publicados num jornal importante: ser lido por milhares de leitores. O que significa reconhecimento duplo: do jornal que os publica e dos leitores. Isso faz muito bem para o ego. Todo escritor tem uma pitada de narcisismo."

Para Rubem Alves —como seria também para mim—, parar de escrever foi uma espécie de "morte simbólica": ele se sentia velho e cansado, não tinha mais vontade de escrever por obrigação. Por isso, citou Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo... não haverá um cansaço das coisas?" E respondeu:

"Sim. Há um cansaço. A velhice é o tempo do cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. Mas, agora, meus 78 anos estão pesando. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar. A obrigação: é isso o que pesa. Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto - pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto - que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever. Mas tenho a obrigação de escrever quando minha vontade é não escrever. E é por isso que vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente."

Na crônica "O direito de decidir sobre a própria vida", Rubem Alves escreveu:

"Todos saem comovidos do filme ‘Menina de ouro’. O assunto é o direito que tem uma pessoa de tomar a decisão de pôr um fim à sua vida quando a vida perdeu o sentido. Esse assunto vai crescendo dentro de mim à medida que a vida se escoa. Amo a vida absurdamente. Meu epitáfio deverá ser: ‘Ele teve um caso de amor com a vida...’. Mas a vida humana não se mede por batidas cardíacas ou ondas cerebrais. A vida humana só é humana quando existe a possibilidade de beleza e riso. Sem beleza e sem risos a vida humana acabou. O que resta é apenas um corpo que deseja morrer. Há de se viver bem. Há de se morrer bem. A ideia de que a medicina é uma luta contra a morte está errada. A medicina é uma luta pela vida boa, da qual a morte faz parte."

Meu cronista favorito morreu no dia 19 de julho de 2014, aos 80 anos. Acredito, como Rubem Alves, que temos o direito de escolher como queremos viver e como queremos morrer:

"Na Declaração Universal dos Direitos Humanos falta um direito: ‘Todos os seres humanos têm o direito de morrer sem dor’."

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