Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Descrição de chapéu Corpo

Só os psicopatas não sofrem!

Como ter coragem para enfrentar os medos, as angústias e as inseguranças de um 'peixe fora d'água'

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Há alguns anos, fui convidada para falar sobre o meu livro "A Arte de Pesquisar" na conferência de abertura da jornada dos alunos do programa de pós-graduação em sociologia e antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Passei várias noites sem dormir pensando no que poderia dizer aos meus alunos.

Decidi começar com uma pergunta: "Quem aqui se sente um ‘peixe fora d’água’?" Imediatamente, todos os que lotavam o auditório levantaram a mão. Depois, deram gostosas gargalhadas, pois jamais poderiam imaginar que até mesmo os mestrandos e doutorandos mais brilhantes se sentiam "peixes fora d’água".

ilustração da matéria do viva bem de 29 de março sobre ansiedade e depressão
'Por que trabalho muito mais do que fulana para escrever meus artigos?' - Rubens Rana/Folhapress

Contei, então, que quando estava com medo de não conseguir escrever minha tese de doutorado, tive a sorte de descobrir a autobiografia de Norbert Elias (1897-1990). Elias foi um verdadeiro outsider no mundo acadêmico: somente aos 57 anos ele conseguiu sua primeira posição estável como professor de sociologia; e sua obra magnífica "O Processo Civilizador", publicada em alemão em 1939, só foi descoberta tardiamente, na década de 1970, na França e Inglaterra. Em Norbert Elias por ele mesmo, ele fez uma confissão que me conforta até hoje nas minhas torturantes noites de insônia.

"Sabia que era um bom professor —já tinha a reputação entre meus companheiros de estudos de possuir o dom de explicar coisas complicadas com simplicidade. Gostava de ensinar. No que diz respeito à pesquisa, dispunha apenas de minha tese de doutorado para provar minha capacidade. E ela representava um trabalho duro. Tinha confiança em minhas capacidades intelectuais, e ideias não me faltavam. Mas o imenso trabalho intelectual que minha tese exigiu me parecera dificílimo. Só bem mais tarde fui pouco a pouco compreendendo que 90% dos jovens encontram dificuldade ao redigir seu primeiro trabalho importante de pesquisa; e, às vezes, acontece o mesmo com o segundo, o terceiro ou o décimo, quando se consegue chegar aí. Teria agradecido se alguém me dissesse isso na época. Evidentemente pensamos: ‘Sou o único a ter tais dificuldades para escrever uma tese (ou outra coisa); para todos os outros, isso se dá mais facilmente’. Mas ninguém disse nada. É por isso que digo isso aqui. Essas dificuldades são absolutamente normais. Sabia que a sorte estava do meu lado. O trabalho jamais foi totalmente fácil para mim, mas eu era perseverante e nunca o abandonei".

Como Norbert Elias, sinto medo, ansiedade e insegurança o tempo todo. Por que é tão difícil para mim se parece tão fácil para fulana? Por que trabalho muito mais do que sicrana para escrever meus artigos? Por que fico sem dormir antes de apresentar meus trabalhos em eventos científicos, participar de debates na televisão ou dar aulas se beltrana dorme sem tomar ansiolítico?

A minha maior inveja é a capacidade que alguns professores têm para dormir ao menos seis horas antes de uma conferência, palestra ou aula. O pior é que a minha insônia não é apenas antes do evento. Quando estou exausta e preciso desesperadamente dormir, fico me torturando: "Deveria ter respondido assim. Como não pensei em dizer isso? É tão óbvio! Ih... falei errado o nome daquele autor". Se somar o antes e o depois, é fácil perceber que são raríssimas as minhas noites de sono.

A confissão de Norbert Elias teve um impacto libertador na minha vida. Quando descobri que até mesmo um gênio como Elias sofreu para escrever sua tese de doutorado, passei a sofrer um pouco menos. Tenho a certeza de que não estou mais sozinha nos meus medos e inseguranças, apesar de continuar sendo, como ele também foi, um "peixe fora d’água" dentro e fora do mundo acadêmico.

Agora, quando acho que não vou conseguir escrever um artigo ou livro, e preparar uma palestra ou conferência, lembro que até mesmo os pesquisadores mais sensíveis e criativos, como Norbert Elias, também sofreram com suas angústias e impotências. Só assim, apesar da insegurança e da ansiedade excessiva, busco sempre fazer o meu melhor. Afinal, como disse uma aluna brilhante: "Só os psicopatas não sofrem!".

Você se sente (ou já se sentiu) um "peixe fora d’água"?

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