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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Gente é pra brilhar, e o Brasil pode isso ainda', diz Matheus Nachtergaele

Aos 53 anos, ator fala sobre série em que homenageia o dramaturgo Domingos Oliveira, relembra retomada do cinema e se diz otimista com 2022

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Retrato do ator Matheus Nachtergaele em sua casa, no Rio de Janeiro João Cotta/Globo

Foram necessários dez dias para que Matheus Nachtergaele se apaixonasse por Domingos Oliveira. A declaração de amor apressada poderia ser confundida com uma das tantas paixões descritas pelo cineasta e dramaturgo, morto em 2019, mas foi o tempo que o ator teve para aprender a ser Cabral, alter ego de Domingos na série “Todas as Mulheres do Mundo”.

Inspirada em filme homônimo do cineasta protagonizado por Leila Diniz e Paulo José, a produção chegou neste mês à grade aberta da TV Globo após debutar no serviço de streaming da emissora. No elenco principal, além de Nachtergaele, estão Emilio Dantas, Sophie Charlotte e Martha Nowill. A trama ainda tem participações de nomes como Lilia Cabral, Fernanda Torres, Maeve Jinkings e Maria Ribeiro.

“Na boca do Cabral estão as falas do homem Domingos Oliveira”, conta o ator de 53 anos, que foi envelhecido pela maquiagem e teve o cabelo raspado e tingido para viver o personagem. “Ele baseou muito a vida dele na aventura amorosa e afetiva. Acho que ele tinha essa sabedoria de estar na vida amando e gostando de seus amigos e amores.”

“Eu encontrava o Domingos em situações festivas, estreias de filmes e saraus de música que ele promovia, mas não fui amigo de mesa, não sentei com o Domingos para conversar. Então foi bonito conhecê-lo enquanto me preparava para sê-lo, para homenageá-lo.”

Retrato do ator Matheus Nachtergaele em sua casa, no Rio de Janeiro - João Cotta/Globo

Essa não foi a primeira vez em que foi recrutado para viver figuras de “brasilidade extrema”, como caracteriza. Ele já interpretou o cineasta José Mojica Marins, o Zé do Caixão, o ator e humorista Mazzaropi e o carnavalesco Joãosinho Trinta. “Todos eles tão marginais, cada um ao seu modo”, diz.

“Mazzaropi nunca foi aceito pela inteligência brasileira, mas era muito amado pelo grande público. O Mujica, ao contrário, tinha uma seita de adoradores, mas era execrado pela maioria como um cara maldito. E o Domingos, apesar de ser muito respeitado e admirado dentro da classe artística, não foi um homem exatamente de sucesso comercial.”

O ator se assiste na TV em “Todas as Mulheres do Mundo” enquanto aguarda a possibilidade de um retorno seguro aos palcos, dada a crise da Covid-19. Enquanto não é chegada a hora, ele elabora um diagnóstico positivo. “Acho que o teatro vai voltar a ocupar um cargo de muita importância social, o lugar da cerimônia livre e do livre pensamento. Vai ser muito bonito quando a gente puder se encontrar para rir e chorar de quem nós somos.”

“O teatro é um irmão gêmeo das religiões, só que não foi domado por nenhum dogma. Cada religião foi muito linda e importante no caminhar do nosso pensamento com relação ao todo, ao divino. Mas todas elas alcançam um certo limite. Num certo momento, só o dogma sustenta aquilo. E o teatro não. Ele é religião, é celebração. É uma grande pergunta, mas também a nossa capacidade de tentar respondê-la.”

Retrato do ator Matheus Nachtergaele em sua casa, no Rio de Janeiro - João Cotta/Globo

As convicções são de um ator que acumula dezenas de papeis no teatro, no cinema e na TV em seus quase 30 anos de carreira. Apesar do extenso currículo, ele não hesita em cravar: “A maioria das pessoas, quando sorri pra mim, eu tenho certeza que sorri para o João Grilo”, diz, rindo, ao mencionar seu personagem em “O Auto da Compadecida”, peça de Ariano Suassuna que virou missérie na Globo, em 1999, e depois filme, ambos sob direção de Guel Arraes.

Mas não que isso o aborreça. “Acho que o sucesso do ‘Auto’ tem a ver com o elogio do Brasil que nós um dia quisemos ser, com falar de política de uma maneira muito simples e divertida. Os protagonistas são dois miseráveis que sobrevivem aos podres poderes do mundo, como a maioria dos brasileiros. Ele nasce num momento em que o Brasil voltou a gostar de si. Estou falando do pós-Fernando Henrique, início da era Lula. O ‘Auto’ foi um dos instrumentos importantes da retomada do cinema.”

“Acho que ele traduziu um espírito nacional”, emenda. Ele não vê semelhança, no entanto, com a reverência contemporânea ao “Brasil acima de tudo”, mote do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

“Nós fracassamos, mas momentaneamente. Ficamos exaustos de nós mesmos e das condições em que a política brasileira é feita e acabamos, como povo, perdendo um pouco a clareza do que é mais importante para nós. Acho que o bolsonarismo é resultante dessa confusão. E não é incompreensível que ele exista, mas espero que estejamos passando por ele para recordarmos do que queremos ser.”

“O bolsonarismo se apoia nessa exaustão, numa certa violência interior. Ele é também o último estertor do capitalismo, uma tentativa desesperada de as coisas não mudarem, sendo que nós somos o país que pode inventar o novo para o mundo inteiro.” Nachtergaele ainda diz acreditar na reorganização das esquerdas, centros e direitas “para que a gente possa voltar em 2022 com opções bonitas de voto”.

Retrato do ator Matheus Nachtergaele em sua casa, no Rio de Janeiro - João Cotta/Globo

“Não queremos ser um país violento, fascista, branco, machista, misógino, preconceituoso, racista, homofóbico, bélico. Não queremos essa ignorância terraplanista. Gente é pra brilhar, como dizia o poeta, e o Brasil pode isso ainda.”

“Fomos treinados para odiar um fantasma comunista que nunca existiu. Nada foi mais conivente com o estado das coisas que o PT, embora tenha conseguido avanços bonitos. Houve uma ameaça de corrupção e, em nome dela, nós fizemos a pior escolha. Digo ‘nós’ porque não quero me separar dos meus irmãos por divergências políticas. Vai ser preciso amar muito o Brasil para poder amá-lo daqui pra frente. Não deixa de ser bonito o desafio que se coloca.”

Ele descreve o último ano de sua vida como sabático, ainda que forçosamente. O ator, que não aderiu a muitas lives, encarou o estímulo de se ver em casa por tanto tempo, pela primeira desde que estreou nos palcos, como uma aventura.

“Ator é mambembe, a gente fica muito na estrada. Eu me lembro de uma vez, não faz muito tempo, que peguei a minha agenda e olhei os dias que tinha passado em casa. Foram 20 noites em casa naquele ano, as outras todas eu tinha passado ou filmando em locações ou em turnê de peça.”

“Em nenhum momento eu me joguei. Não cometi nenhum impulso suicida. Hoje em dia você ir numa festa com mais de 20 pessoas é muito suicida, não é muito diferente de beber muito ou de fumar cigarro”, afirma. “Eu sou solteiro e tô sentindo falta pra caramba de aglomerar. Não precisa ser com muita gente, não. Queria aglomerar com uma pessoa só e já tava bom”, diz, aos risos.

Retrato do ator Matheus Nachtergaele em sua casa, no Rio de Janeiro - João Cotta/Globo

Ao mesmo tempo, ele faz a ressalva de que é necessário compreender as pessoas que não respeitam o distanciamento social. “É preciso ensiná-las a ter calma, a voltar pra dentro de si mesmas”, diz.

“Assim que as regras de quarentena relaxaram no Brasil, as pessoas fizeram filas em shoppings. Que desgraça você tem que fazer num shopping center às 8h da manhã, em plena pandemia? ‘O que pode ser, meu Jesus Cristo’, pensava eu, ‘que não tenha na farmácia, no armazeco?’. Mas o fato é que a gente foi treinado para um excesso de consumo.”

“Acho que alguma coisa mudou, sim, para sempre. A espécie adoeceu concretamente. Nós estamos todos no meio de uma peste, de uma certa novidade que tem a ver com o excesso populacional, com a degradação do meio ambiente.”

Sua fala ganha contornos de euforia e otimismo ao mencionar seus projetos no audiovisual. Ele estreou neste mês no Festival de Roterdã, na Holanda, com o filme “Carro Rei”, de Renata Pinheiro. Na última semana, iniciou os ensaios remotos da continuação de “Cine Holliúdy”. E já se prepara para a série “O Jogo que Mudou a História” (Globoplay), que anuncia como “um épico sobre as milícias brasileiras”.

A esperança de Matheus Nachtergaele, porém, extrapola suas realizações pessoais e se estende para todo o setor. “Eu acho que vai ser bonito o ressurgimento. Os resistentes continuarão e aqueles que têm muito a dizer, como sempre, resistirão fazendo um cinema que se deseja brasileiro.”

Retrato do ator Matheus Nachtergaele em sua casa, no Rio de Janeiro - João Cotta/Globo

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