Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Minha mãe achou que eu ia levar facada, tiro', diz Ana Cañas sobre ameaças por posições à esquerda

Aos 40 anos de idade, a artista lança canções de seu álbum de Belchior, diz que o coletivo está à deriva no Brasil e relembra momentos dramáticos como a morte do irmão e a relação com o álcool

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Retrato da cantora Ana Canãs, em sua casa no bairro Jardim Paulista

Retrato da cantora Ana Cañas em sua casa, em São Paulo Bruno Santos/Folhapress

Quando Ana Cañas nasceu, Belchior já tinha trocado o Ceará pelo Sudeste, lançado “Alucinação”, disco que é considerado sua obra-prima, e consagrado algumas de suas composições na voz de Elis Regina. O ano era 1980, e o autoexílio que marcaria o fim de sua vida e carreira estava a décadas distante de acontecer.

Aos 40 anos de idade, 15 deles como cantora, Ana Cañas revisita o repertório de Belchior em um novo álbum que reúne apenas canções do artista, morto em 2017. A primeira amostra desse trabalho, a faixa “Coração Selvagem”, foi lançada na sexta (21). As demais músicas do projeto virão a público a prestações —quatro em julho, outras quatro em agosto e mais cinco em setembro.

“Fiz um exercício CDF para tentar desvendar quem é esse artista que escreveu essas músicas que cruzaram o tempo”, conta Ana. “Descobri um ser humano muito sensível, muito educado, muito doce. Ele tem uma acidez natural de uma mente muito apurada. E tem seis planetas em escorpião [signo], eu tenho quatro. Isso coloca a gente num mapa astrológico parecido de sentimento, de forma de pensar.”

Retrato da cantora Ana Cañas em sua casa, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

A ideia do disco surgiu depois de uma live feita no ano passado, voltada ao repertório do cantor cearense. Ana conta que se surpreendeu com a repercussão do concerto virtual, tendo atraído ouvintes que até então desconheciam sua obra e rendido a ela elogios de um dos herdeiros de Belchior. “O filho dele me mandou um email muito tocante, fiquei emocionada. Ele falou que tinha assistido à live e que estava feliz com esse resgate.”

Longe dos palcos há mais de um ano, desde que o novo coronavírus chegou ao Brasil, a cantora afirma que o projeto só foi possível graças a um financiamento coletivo, que angariou R$ 55 mil. “A realidade do artista brasileiro independente é que sem show a gente não tem fonte de renda.”

“A área da cultura está realmente muito afetada. É desesperador você ver amigos músicos que têm que deixar a casa para ir morar com os pais porque não conseguem pagar o aluguel”, segue a cantora, que conta ter renegociado o valor do apartamento onde vive, na capital paulista.

Retrato da cantora Ana Cañas em sua casa, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

Em meio à epidemia, a artista diz ter tido momentos em que se sentiu emocionalmente “triturada”. “O que mais me machuca é o atual governo. Isso está muito além da minha própria vida, está dizendo respeito à vida dos brasileiros e das pessoas em maior situação de vulnerabilidade. A demora na compra das vacinas, o negacionismo…”

“Me machuca saber que o coletivo está à deriva numa situação sanitária em que já existe vacinação. Você vê o restante do mundo retomando suas atividades e a gente ainda falando numa terceira onda.”

Outro custo da crise para Ana foi ter que se afastar de atividades presenciais em defesa das pautas em que acredita. Nos anos recentes, a cantora participou de manifestações e chegou a percorrer capitais ao lado do ex-presidente Lula (PT).

Retrato da cantora Ana Cañas em sua casa, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

“Num evento em Porto Alegre, tinha, por baixo, cem mil pessoas. A gente estava ilhado. Isso foi muito próximo à prisão. E eu tinha que cantar ‘O Bêbado e a Equilibrista’ à capela. Minha mão tremia. Era tanta energia, vi ali cenas de pessoas apaixonadas pela ideia que ele carrega de um país mais justo.”

Não que a empreitada em defesa dessas bandeiras seja tranquila. Ana já foi alvo de latas de cerveja, ovo e pedras arremessados durante shows. Desde 2017, quando começou a se posicionar contra a prisão de Lula pela Lava Jato, passou a receber ameaças nas redes sociais.

“Teve uma época em que minha mãe achava que eu ia levar uma facada, um tiro. Ela tinha medo, rezava, orava e fazia umas meditações para que eu ficasse viva [risos].”

A cantora defende que a prisão do ex-presidente Lula em 2018 tinha motivação política e buscou tirá-lo da disputa pela Presidência da República. “Ele era o favorito nas pesquisas”, destaca. “Tomei pra mim esse momento de acolhê-lo no sentido de ser uma voz artística que bradasse, que cantasse que aquilo era injusto.”

Retrato da cantora Ana Cañas em sua casa, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

“Torço para que ele seja eleito”, diz sobre o petista, que disputará em 2022. “O Lula tem um papel preponderante de pioneirismo e protagonismo das mudanças sociais brasileiras.”

“Nesse momento de pandemia, se fosse uma pessoa como ele na cadeira da Presidência, a gente estaria num momento muito diferente do que vive hoje”. Diferente para melhor ou para pior? “Para melhor, com certeza! Não tem como ser pior, né?”, responde.

Ao se preparar para lançar as canções de Belchior, Ana Cañas se vê às voltas com suas origens como cantora: ela iniciou sua carreira como intérprete de clássicos do jazz e de nomes como Tom Jobim e Caetano Veloso na noite paulistana.

Em uma dessas noites, Ana teve a companhia de Chico Buarque, que a assistiu da plateia depois de uma tentativa frustrada —na primeira vez, a casa estava lotada e Chico deixou o recinto por não ter onde sentar. “Não arrumaram a porra de uma cadeira pro Chico Buarque”, relembra, aos risos.

Além do cantor e compositor, ela também passou a receber visitas de gravadoras, por meio das quais lançaria seu primeiro disco, “Amor e Caos” (2007), e mais outros três.

A música foi o alívio de Ana num momento de dificuldade financeira. Emancipada aos 17, quando foi morar em um pensionato, ela fazia sua renda entregando panfletos de imobiliária no farol, distribuindo amostra grátis em supermercado e se caracterizando de princesa em festas infantis. “Tinha dia que eu só tinha R$ 2 ou R$ 3 pra me alimentar.”

A primeira apresentação musical foi no bar do hotel Grand Hyatt, a convite de um amigo. Até então, a experiência da cantora se resumia a rodas de violão. Naquele momento, ela passou a conciliar o trabalho, que por muitas vezes se estendia até a madrugada, com as aulas matinais de artes cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP.

De lá pra cá, Ana já firmou parcerias com nomes basilares da música brasileira, como Arnaldo Antunes, Marina Lima, Nando Reis e Ney Matogrosso, muitos dos quais se tornaram também seus amigos.

Retrato da cantora Ana Cañas em sua casa, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

“Perdi um irmão, ele tinha 24 anos e sofreu um afogamento no mar. A Marina [Lima] veio me visitar. Ela ficou sentada no chão aqui de casa comigo e falou: ‘Eu já perdi um irmão. Sei como é perder um irmão. Eu estou aqui, segurando a sua mão’. Nunca vou esquecer.”

Em outro episódio sensível, ela foi aconselhada por Ney Matogrosso a repensar sua relação com o álcool. “Eu estava sofrendo com a morte do meu pai [por alcoolismo] e queria entender. Entrei numa autossabotagem louca de fazer alguns shows alcoolizada. E lembro que o Ney me puxou de canto e falou: ‘Cara, para de beber porque você é muito talentosa e isso pode ser muito perigoso pra você’. Cheguei em casa aos prantos, meu ídolo tinha falado aquilo pra mim. No dia seguinte, parei.”

“Cometi erros ao longo da minha vida como todo ser humano, mas não me arrependo de nada. Tudo me trouxe aprendizado, mesmo que fosse através da dor”, avalia. “Jovem, eu era muito catártica, muito à flor da pele, muito cheia de dar opinião em tudo. Acho que faz parte da idade. Hoje estou muito mais alinhada com a pessoa que gosto de ser.”

Retrato da cantora Ana Cañas em sua casa, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress
Erramos: o texto foi alterado

O disco “Alucinação”, de Belchior, foi incorretamente chamado de “Anunciação”. O texto foi corrigido.

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