Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'O Brasil é um país de arrependidos, que gosta do coitadismo', diz Rafinha Bastos

Aos 46 anos, humorista celebra turnê nos EUA, diz querer conquistar o mundo, rechaça críticas a comediantes e defende que todos tenham o direito de se expressar e ser odiado

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Primeiro alvo de linchamento virtual promovido por redes sociais no Brasil, quando isso nem era chamado de cancelamento, Rafinha Bastos, 46, frequenta hoje o palco do Comedy Cellar, um dos mais importantes clubes de comédia dos Estados Unidos, em Nova York.

A boa aceitação naquele espaço o credenciou para a cobiçada rota de stand up no país, atividade que lá faz parte do menu de atrações obrigatórias para turistas, tamanha é sua valorização local.

Aliás, Rafinha, não: Rafi Bastos, como consta nos cartazes da turnê "Unfamiliar Territory Tour" (turnê do território desconhecido, em tradução livre), que leva seu nome e tem apresentações agendadas para 19 cidades até setembro, nos EUA. Em outubro, ele chega a Toronto, no Canadá.

Em maio, o humorista foi até o Oriente Médio e se apresentou para 700 pessoas em Dubai, 500 em Oman, e 600 no Bahrein, sempre em inglês.

O humorista Rafinha Bastos em East Village, Nova York
O humorista Rafinha Bastos em East Village, Nova York - John Cafaro/Divulgação

De volta aos EUA, esgotou 1.100 ingressos em Boston, em junho, e celebrou "sold out" na venda de tickets para vários shows, incluindo dois em Miami neste sábado (15), um em Orlando na quarta (19) —onde fará dois extras—, outros dois em Los Angeles, no dia 26, e um em Chicago, em 10 de setembro, onde também haverá duas apresentações extras.

Outros, como em Seattle e São Francisco, anunciam "few tickets left" (poucos ingressos disponíveis). A venda para uma apresentação maior em Nova York, no Sony Hall, com mil lugares, em 16 de setembro, também está esgotada.

Em seus perfis nas redes sociais, onde ele carrega multidões —são 3 milhões no YouTube, 1,5 milhão no Instagram e 11 milhões no Twitter—, o humorista tem anunciado seus êxitos mundo afora.

Mas basta que alguém entre na rota de colisão do debate sobre os limites do humor, como aconteceu recentemente com o humorista Léo Lins, para que Rafinha seja convocado a se manifestar.

O assunto o persegue desde 2011, quando foi ejetado da bancada do programa CQC, da Band, por um comentário que lhe parecia uma boa piada. A gracinha lhe custou R$ 250 mil a Wanessa Camargo e familiares em 2016.

Lins teve um show suspenso da internet por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, atendendo a um pedido do Ministério Público, por desrespeitar minorias. No repertório vetado, havia pretensas piadas citando escravidão e deficiência física.

"Não é meu lugar discutir isso", diz Rafinha à coluna, em nossa conversa por videochamada entre São Paulo e Nova York, onde ele mora desde 2018.

"A gente não consegue sair do lugar nesse tipo de discussão. As pessoas têm o raciocínio muito limitado nesse sentido. Não todo mundo, mas principalmente aqueles que se expõem. Quem está de boa com as piadas do cara não está nem aí pra isso. Essa discussão está sendo feita longe das pessoas que compram ingressos para os shows."

"É uma discussão elitizada, que não afeta o povo, que quer mais é se divertir. Agora, há um risco de censura institucional. ‘Não pode falar disso’. E tem muito colega que concorda. É ruim porque isso respinga em todo mundo em alguma hora."

"Eu nem acho que essas discussões não devam ser feitas. Mas devem ser feitas longe do olhar do comediante, que não pode se contaminar com nada disso. Ele tem que falar o que ele acha que é engraçado, e o que não for engraçado, ele para de falar."

"As opções são muito pessoais. Luto para que os comediantes tenham o direito de se expressar, inclusive de serem rejeitados e odiados. Deixa que os próprios profissionais entendam isso, não queira ser babá de discurso."

Mas o repertório que o levou a conquistar a plateia americana segue outro rumo: concentra-se, sobretudo, nas diferenças culturais e linguísticas entre um latino do Brasil vivendo nos EUA e o público local.

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O humorista Rafinha Bastos em East Village, Nova York - John Cafaro/Divulgação

Seu script nos comedy clubs dos EUA foi construído pelo olhar do estrangeiro que vê graça no que os nativos já normalizaram. "O Brasil é um país violento, mas os EUA também são. A diferença é que nós somos pobres e vocês são loucos", diz um dos trechos dos vídeos disponíveis na internet, com boa resposta da plateia.

"Eu tenho um olhar muito particular da realidade que eles muitas vezes não têm. Aponto como engraçadas certas coisas a que eles já estão habituados."

Afinal, há mais tolerância lá do que cá para o humor ácido? "[Aqui, nos EUA, algumas coisas] são mais toleráveis", avalia. "[O cara pode não gostar, mas] não vai proibir. É isso que é importante. O perigo é impedir."

Em 2014, Rafinha foi recontratado pela Band para comandar o talk show Agora é Tarde, mas o programa acabou em 2015 por contenção de despesas. Antes de partir para os EUA, também ampliou horizontes no YouTube com uma série de entrevistas batizada como "Oito Minutos", que depois virou "Mais Que Oito Minutos".

"Eu não saí do Brasil porque não tinha mercado ou trabalho. Eu vim pra conquistar o mundo", avisa, sem falsa modéstia. Se essa lotação de shows paga as contas da aposta? "Esse ano comecei a ganhar uma grana legal. Meu objetivo inicial aqui nunca foi financeiro. Eu sabia que ia ter que fazer um investimento alto, porque morar em uma cidade como Nova York não é nada barato."

"A ideia não era nem conquistar público, era me desafiar junto aos maiores comediantes do mundo. Hoje, eu me apresento em alguns dos maiores comedy clubs dos Estados Unidos. Sou o único sul-americano aqui", orgulha-se.

"Pretendo fazer [tour na] Europa no ano que vem. Sei que tem um público muito grande para me assistir na Espanha, na Itália, na Turquia."

Em Nova York, diz, faz de 40 a 50 apresentações por mês, revezando-se com outros comediantes, em turnos de cerca de 20 minutos. "O bacana de Nova York, no início, era subir toda noite no palco sem que ninguém soubesse quem eu era. Parti do zero. Agora já sou um pouco mais conhecido."

O princípio de tudo nos EUA foi em Los Angeles, onde tinha alguns conhecidos, depois Nova York. "Hoje trabalho principalmente no Comedy Cellar, que está no documentário do Seinfeld", indica. "Vim pra cá sem credencial. Evitei dizer: ‘Olha, tenho especial na Netflix e 1,5 milhão de seguidores’."

"Em 80% dos lugares, eles estão pouco se importando com a tua carreira. O que importa é a performance ali na hora, principalmente em Nova York. É um lugar que tem filas gigantescas toda noite, tipo ponto turístico da cidade. Eles se programam com muita antecedência."

O fascínio de Rafinha pela arte do stand up nasceu da temporada que passou nos EUA em 1999, após se formar em Jornalismo pela PUC de Porto Alegre. Com 1,96 metro de altura, jogou basquete profissionalmente até 2001, quando tinha 25 anos, competindo na Liga Universitária Norte-Americana (NCAA) pela Chadron State College.

"Os caras já fazem isso aqui há 60, 70 anos. Todas as discussões que a gente tem no Brasil agora, aqui já aconteceram há muito tempo. E acontecem no Brasil ao mesmo tempo em que a internet possibilita que todo mundo opine. Não é uma discussão acadêmica."

"Aí tem aquilo: ‘O humor é brasileiro ou é americano?’. Não, o humor é pessoal. Tem o cara que faz um humor mais ácido, ou mais suave. É muito subjetivo do profissional: se o cara quer criticar ou fazer um humor político, ou só quer provocar. Tem hora que eu olho e falo: ‘Essa piada eu não faria’." Como o quê? "Sei lá, coisas que eu acho que não se encaixariam para mim", desconversa.

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O humorista Rafinha Bastos - John Cafaro/Divulgação

Para testar o riso americano, só subindo no palco e avaliando as reações da plateia. No seu caso, conta, tudo é pensado, escrito e matematicamente planejado para o tempo em cena, sem se aventurar muito por improvisos, até em função da diferença de idioma.

"O comediante não sai por aí falando coisas de que o público não acha a menor graça. Eu tenho essa impressão quando ouço [alguém dizendo] ‘como é que o cara fala isso?’. Fala isso porque ele já testou, já colocou à prova esse conteúdo. Se não teve graça é porque ele está começando a fazer aquilo."

"Quando defendo o direito do comediante de se expressar, fica a impressão em algumas pessoas de que eu sou o cara que faz comédia única e exclusivamente para provocar, ou que a piada é escrita como se o comediante se utilizasse do subterfúgio da liberdade de expressão para ofender alguém", diz. "Esse nunca é o intuito de nenhum comediante", assegura.

Seu repertório do passado guarda piadas que não faria hoje, admite. Mas nem por isso apaga do YouTube o que hoje pode ter envelhecido mal. "Não me arrependo de absolutamente nada. Tudo teve o seu tempo, tudo teve a sua época. Se hoje a minha cabeça não trabalha para um lado ou para outro, é porque mudei ou evoluí. E nunca apaguei tuíte, como faz o [comunicador e youtuber] Felipe Neto", provoca.

Recusa-se a apedrejar o humor de ontem condenado hoje. "Tem gente que olha para trás e xinga o Didi pelo que ele dizia ao Mussum. Que triste é isso. Brasileiro tem esse hábito terrível de destruir reputações."

"Veja o Pelé: durante os últimos 20 anos da vida do maior ídolo da história do esporte mundial, uma parcela da população falava: ‘Aquele cara só fala merda’, ‘Pelé calado é um poeta’. O Pelé!"

"Aqui, o Russel Westbrook saiu de Los Angeles para ir jogar no Oklahoma. Quando o time de Oklahoma foi jogar em Los Angeles e ele voltou para o lugar onde ele jogava, recebeu uma homenagem. Com telão. ‘Nosso ídolo’, o cara chora, a plateia aplaude. Agora, vai um cara de Porto Alegre ir jogar no Flamengo e voltar para jogar em Porto Alegre? [Vão dizer] ‘Filho da puta’, ‘traidor’, ‘sacana’."

"O brasileiro é capaz de dizer que o Faustão é um fracassado agora que está saindo de um programa de televisão. Não consegue olhar pra trás e falar: ‘Esse cara é do caralho, olha o que ele construiu’."

"Então, o cancelamento, no Brasil... Quantos estão contando a história de um comediante que sai de Porto Alegre e agora está conquistando o mundo inteiro? Mas não. Por quê? Porque eu não jogo o joguinho, não minto, não faço média." O cancelamento sofrido há quase 12 anos, avalia, não se deu pela piada que rendeu processo, mas porque não se desculpou. "Se eu tivesse pedido perdão e aceitado a suspensão, hoje eu era o Datena", acredita.

"Eu sabia que era um preço a se pagar pelas opções que fiz. Conheço o jogo, poderia jogar, como muitos dos meus amigos jogaram, mas nunca me fez confortável. Isso me isolou, sabe?"

"Muitas das opções que fiz lá atrás, inclusive, era para fortalecer essa arte de que eu tanto gosto. Não era só para mim, que não ajoelhei e pedi desculpas [por piadas], [mas] era para possibilitar que todo mundo tivesse liberdade."

O cancelamento no Brasil também tem suas panelas, aponta. "Você tem que escolher um lado. E não concordar cegamente com um dos lados te isola."

"O Brasil é um país de arrependidos, que gosta do coitadismo, do cara que se ajoelha, que pede perdão, que traiu a mulher e diz que não vai fazer isso nunca mais, que merece uma nova oportunidade. Aqui, o rapper fala o nome dele nas músicas, é da cultura do povo ter orgulho do que faz."

Dito assim, parece até que ele nem pensa em voltar ao seu país. "Eu gosto muito de fazer minhas coisas no Brasil, tenho os meus projetos, curto o povo, a galera gosta de mim. Mas hoje estou muito focado aqui. O meu público nunca deixou de estar comigo, nem na época do cancelamento, lá em 2011."

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