Mônica Bergamo

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Descrição de chapéu Todas LGBTQIA+

Eu soube que era mulher desde o dia em que nasci, afirma Maria Clara Spinelli

Primeira atriz trans a protagonizar uma novela brasileira conta de seu processo de transição

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"Nascida de novo, renascida, ressuscitada. Isso é muito significativo. Vem do latim Renatus, que deu no francês René, para os homens, e Renée, para as mulheres [a pronúncia é idêntica, "Renê"]. Em português e italiano, ficou Renata e Renato."

Maria Clara Spinelli não esconde seu entusiasmo por Renée, uma das sete protagonistas do remake de "Elas por Elas", nova ocupante da faixa das seis na Globo. Até a etimologia do nome da personagem ela pesquisou, e se encantou. Os autores Thereza Falcão e Alessandro Marson, que adaptam para o presente a trama escrita por Cassiano Gabus Mendes em 1982, trocaram o nome de Carmen, então interpretada por Maria Helena Dias, para outro que simbolizasse sua nova condição: Renée é uma mulher transgênero.

A atriz Maria Clara Spinelli - Carlos Sales/Divulgação

Uma trans careta, que não vem da marginalidade, casada com um homem cisgênero (que se identifica com o gênero atribuído no momento de seu nascimento) e mãe adotiva dos dois filhos do primeiro casamento dele. "A tradicional família brasileira", ri Maria Clara. "Olha só que transgressor."

Também há transgressão no fato de Maria Clara Spinelli, uma atriz trans, fazer a primeira protagonista trans de uma novela brasileira. Renée integra um grupo de sete amigas que se reencontram depois de muitos anos. As outras seis são encarnadas por Deborah Secco, Isabel Teixeira, Karine Teles, Késia Estácio, Mariana Santos e Thalita Carauta.

Com quase 25 anos de carreira, iniciada num grupo de teatro-dança, Maria Clara Spinelli percorreu um longo caminho até chegar ao lugar onde está. Seu primeiro papel de destaque foi no longa "Quanto Dura o Amor?", de Roberto Moreira, lançado em 2009. O filme lhe rendeu um convite para fazer um vídeo-cadastro na Globo.

Em 2013, foi chamada para sua primeira participação numa novela, "Salve Jorge", de Glória Perez. A personagem, uma mulher trans que era aliciada para viajar à Turquia sem saber que seria vítima de um esquema de tráfico humano, tinha apenas uma cena.

"O diretor de elenco Luiz Antonio Rocha me ligou numa terça, e a gravação já era na quinta. Eu topei, mas quando cheguei na porta dos estúdios Globo, a ficha caiu: 'Meu Deus, o que é que eu estou fazendo aqui?'. Fiquei nervosa, mas tive a sorte de fazer essa primeira cena com a [atriz] Totia Meirelles, uma das minhas madrinhas na televisão."

"Eu não sabia nem como deveria falar. Alto e com a voz empostada, como no teatro? Ou com voz normal? 'Normal', me explicaram, porque tem microfone. Aí fomos ensaiar com a câmera e de repente eu ouço: ‘Valeu’. Já tínhamos gravado a cena. Foi tudo muito rápido."

"Algumas semanas depois, o Luiz Antonio me ligou de novo e disse: ‘A Glória [Perez] adorou e quer que você volte para a novela. Ela vai escrever para você’. Aí eu voltei e fiquei até o final. Glória sempre me enalteceu, sempre me disse que eu sou uma grande atriz. É outra das minhas madrinhas na TV."

Em 2017, Glória Perez deu mais um bom papel para Maria Clara Spinelli: Mira, comparsa de Irene, a vilã vivida por Débora Falabella em "A Força do Querer". Mira era uma mulher cisgênero, e Maria Clara sempre batalhou para que atores trans também fossem escalados para personagens cis. Mas, segundo ela, sua participação naquela novela não teve na imprensa a repercussão que merecia.

"Sim, eu reclamo, porque quero fazer de tudo. Shakespeare, Nélson Rodrigues, Tennessee Williams. Mas eu nunca disse que só queria fazer personagens cisgênero. A Renée é transgênero, mas, acima de tudo, é uma grande personagem. Qualquer atriz agradeceria de joelhos pela oportunidade."

Na trama de "Elas por Elas", Renée tem um casamento feliz com Wagner, papel de César Mello. Mas ele desaparece com todo o dinheiro da família, deixando à míngua a mulher e os dois filhos, Toni e Vic, vividos por Richard Abelha e Bia Santana. Os três, então, vão morar com Érica, irmã de Renée, feita por Monique Alfradique.

Maria Clara não economiza elogios ao texto da novela, aos seus colegas de elenco e à diretora artística Amora Mautner. Fica muito mais reticente quando o assunto é sua vida pessoal. Ela nunca compartilhou muitos detalhes de seu passado. Em nenhum lugar da internet é possível descobrir seu nome original.

Sabendo disso, perguntei à atriz quando foi que ela se descobriu uma pessoa transgênero. "Deixa eu melhorar a sua pergunta", respondeu Maria Clara. "Quando foi que eu soube que era mulher? Desde que eu nasci. Isso nunca foi uma questão para mim."

"Não faço a mínima ideia porque eu sou mulher. Eu simplesmente nasci como sou. E foi muito chocante crescer e entender que as pessoas me consideravam um menino. Eu sempre quis ter boneca. Nunca pude ter boneca. 'Ah, mas você é um menino', me falavam."

"E aí eu sentia que tinha que reprimir tudo, pois tudo era um problema. Falar era um problema, andar era um problema, me vestir era um problema. Eu fui uma criança que se escondia."*"Só descobri na adolescência que existe uma coisa chamada transgeneridade. Mas a minha identidade feminina sempre existiu em mim e sempre foi muito clara."

"Tudo o que eu falo aqui, seja profissionalmente, como atriz, ou pessoalmente, como mulher, eu falo sobre mim, em meu nome e por mim. Não estou falando em nome de ninguém, nem representando nenhum grupo, porque a experiência humana é absolutamente subjetiva, pessoal e intransferível."

Pergunto a Maria Clara se ela teve apoio da família. "Eu nasci em Assis, no interior do estado de São Paulo. Minha mãe me teve com quase 45 anos. Isso era uma coisa muito incomum para a geração dela. Ela já partiu, não está mais neste plano, mas eu me refiro a ela sempre no presente. Foi a única família que eu tive."

"Não é que não houve dificuldades. Mas, depois que minha mãe aprendeu comigo, ela entendeu e me deu todo apoio. Nunca errou um pronome nem meu novo nome. E era a única pessoa no mundo que poderia errar meu nome quantas vezes quisesse, porque foi ela quem deu o primeiro."

"A transgeneridade é uma coisa linda. É assombrosa, é uma experiência única. Só quem passa por ela entende como é rica e dolorosa. Mas o que a faz ser tão dolorosa é o preconceito das pessoas. Também é um aprendizado para todos. Eu também tive que aprender. Também tive medo, também não entendia. Estou me desconstruindo, e vou continuar a me desconstruir."

Maria Clara teve que reviver algumas dessas dores numa das primeiras cenas que gravou para "Elas por Elas". Quando Renée reencontra as amigas de infância, nem todas sabem que ela agora é uma mulher.

"Foi a cena mais difícil que eu gravei na minha vida. Eu estava morta de preocupação e de medo, apesar de, olhando de fora, ser uma cena aparentemente simples. Mas, de dentro, é muito complexa. Quanto mais perto a personagem está da atriz, mais difícil é o trabalho de interpretação."

"Passei por algo parecido em muitos momentos da minha vida. Estou tendo que reviver coisas que já enfrentei e já superei, mas, agora, publicamente. Para que milhões de pessoas vejam como é difícil transicionar."

"Eu tenho amigas trans que são doutoras, professoras universitárias, cientistas que trabalham na Nasa. Cadê as histórias dessas mulheres? Cadê os documentários, as capas de revista, os filmes? Agora, a nossa irmã que morreu apedrejada e linchada, isso é recorrente o tempo todo na mídia, e também no audiovisual. Eu já fiz três presidiárias. Já morri de todas as formas, assassinada, crucificada. Já fiz esse lugar que existe, mas que não é a nossa única narrativa."

"Colocar numa novela uma mocinha que nasceu transgênero é algo transgressor. Ela está casada há 15 anos com um homem que a assumiu para o mundo. Os filhos do primeiro casamento dele a tratam como mãe. Essa mulher é amada, esse corpo é amado. [O fato de] a Renée não morrer, a Renée ser feliz... tudo isso é revolucionário."

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