Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Muniz Sodré

Papagaios louros

Não se pode tolerar a intolerância, esse é o limite

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Como ter certeza de que determinado ser vivo é um homem e não um papagaio?

A questão parece pitoresca, menos para o matemático e filósofo René Descartes (1596-1650), pai-fundador do pensamento moderno. Para ele, a certeza sobre uma coisa é alcançada pela dúvida quanto a sua existência, para que, aos poucos, racional e metodicamente, o espírito possa comprová-la. A dúvida metódica é um jogo com regras e um limite: não se pode duvidar da dúvida.

Algo semelhante ocorre com a tolerância como princípio de aceitação de diferenças. Não se pode tolerar a intolerância, esse é o limite.

Ilustração representando uma gaiola da qual saem várias letras
Ilustração publicada em 14 de fevereiro - Angelo Abu

O argumento pode ser deslocado para o tópico da liberdade de expressão, que vem frequentando, com incertezas e obscuridades, os espaços da mídia. Vale enfatizar que essa liberdade não se confunde com a livre atividade do aparelho fonador. Ou seja, a fala é inerente ao homem por natureza, porém, para tornar-se civilmente expressiva, ela é pautada pelas regras sociais do discurso.

No sentido propriamente linguístico, o fraseado do papagaio é pura ação mecânica, repetitiva, mas não uma fala, muito menos livre expressão. Agora em pauta a situação em que um indivíduo, invocando o universalismo da liberdade de expressão e, portanto, demandando tolerância, se dê ao direito de defender a legalização de um partido nazista.

De saída, a sua demanda viola um limite lógico, já que se trata de tolerar uma reconhecida fonte histórica de intolerância para com a diversidade humana, ou seja, o nazismo. Em seguida, isso vai de encontro às regras civis e morais vigentes: a fala pode existir, não a sua circulação expressiva.

São regras pactuadas pela historicidade (agência humana na história) depois do horror do Holocausto e do sofrimento mundial em que dezenas de milhões foram vítimas da alucinação nazifascista. Elas assinalam um limite fixado pelo jogo civilizatório. A ninguém é dado ignorar a lei nem as regras de preservação ética da espécie humana, que sustentam a aceitação da lei e impedem a queda na barbárie.

Liberdade de expressão não é o "ultimate fighting" da fala, mas exercício humanístico da sociedade civil. Nesse escopo, é inadmissível a instituição de linchadores, de pedófilos ou de nazistas: um partido necropolítico seria a própria morte da política.

Argumenta-se que nos EUA seria constitucionalmente viável essa discussão. Lá se multiplicam pré-insurgentes, mas sob o olhar de um dos maiores sistemas de vigilância do mundo. Não são "homens livres" como se imagina, não se expressam, apenas papagueiam: as redes sociais pariram uma mutação do popular papagaio do bico dourado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.