Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Muniz Sodré

Surtar em línguas

Atual movimentação extremista torna limites entre energia viva e inorgânica imprecisos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Patéticos ou penosos: incerta é a escolha da caracterização para os eventos tabajaras posteriores à eleição presidencial. Haverá outros adjetivos, como grave ou equivalentes, pensando-se nos bloqueios, na súcia empresarial ou no motim rodoviário. Inequívoco é o diagnóstico de um golpismo bronco, por mais que tramado e financiado. Tecnicamente, teleguiado por plataformas digitais.

Até agora se supunha que o livre arbítrio qualificasse o relacionamento com a internet. Isso é até possível, quando se consideram a amplitude e a heterogeneidade das possibilidades oferecidas pela comunicação eletrônica. Mas os eventos pós-eleitorais parecem dar margem à estranha hipótese de que as redes digitais organizadas em plataformas e aplicativos tenham adquirido autonomia suficiente para movimentar automaticamente uma enorme parcela dos usuários. Heterodireção é um nome adequado para esse fenômeno: sem o comando direto de um centro, o indivíduo é teledirigido por um sistema de comunicação autonomizado.

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro fazem protesto antidemocrático em frente ao Tiro de Guerra de Santo André - Rivaldo GOmes - 2.nov.22/Folhapress

Vem à memória "A Máquina Parou" (1909), de E.M. Forster, a distopia de um mundo subterrâneo regido por uma supermáquina, onde o elemento humano não conta. Toda dissonância é corrigida por um dispositivo reparador denominado "verme esbranquiçado". Forster antecede de muito o computador, mas sua fantasia maquinal é parente dos algoritmos de Facebook, YouTube, TikTok, Kwai ou dos disparos em massa do Zap e Telegram.

Na atual movimentação extremista de rua, intrigante é a imprecisão dos limites entre energia viva e inorgânica, ou seja, não saber se os fluxos partem de pessoas ou robôs. Ainda que haja um óbvio centro financiador, o sistema de desinformação é subterrâneo e impermeável à lógica dos fatos. O efeito imediato é o apagamento de percepção da realidade histórica em função do artifício paralelo. Daí a dissonância entre o foco algorítmico e o desfoque sociopolítico dos manifestantes.

A consequente ambiguidade tornou sinônimos patriotismo e arruaça. Mas, sendo apenas programação de baderna, o golpismo tabajara também confundiu a diretiva de "intervenção federal", desnorteando os fanáticos. De evidente apenas a maquinação anticívica: aliás, colar-se à frente de uma carreta em velocidade é a alegoria do desejo absurdo de fusão com uma máquina. O apoio ao derrotado virou pedido tresloucado de retorno do mecanismo militar. Algoritmos não falam em línguas. Na sua falta, uma histriônica histeria de conversão coletiva: crentes falando embolado na frente de quartéis, saudações nazistas, gente entoando o hino nacional para pneu de caminhão, marcha alucinada em passo de ganso. A máquina parou, os surtados ficarão à espera de um verme esbranquiçado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.