Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Indiferença canibal

Questão séria é averiguar por que um homem público perpetra uma bazófia tão desrespeitosa

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Numa das cenas da série sobre o canibal americano Jeffrey Dahmer, o serial killer sussurra candidamente à sua vítima iminente que gostaria de lhe comer o coração. Na entrevista ao The New York Times, o então deputado Bolsonaro admite que comeria "tranquilo" o indígena supostamente cozinhado em sua visita a uma aldeia em Roraima. Recuou porque os acompanhantes não referendaram a sua disposição de "submeter-se à cultura deles". Mas houve por bem dar um toque de master-chef do desconchavo: comeria com banana."

Credat Judeus Apella, non ego". No ginásio, meu padre-professor de latim arrematava com sátira de Horácio as histórias que embasbacavam a turma. "Acredite quem quiser, eu não", traduzia à boca pequena. É o dilema do ouvinte de relatos em princípio absurdos, mas com antecedentes realistas. Vale trazer à baila o nome de Jean Bédel Bokassa, segundo presidente da República Centro-Africana (1966-1976), autodeclarado imperador, notório por mortes extrajudiciais, torturas, estupros e canibalismo. Ao ser derrubado do poder, não conseguiu esconder a tempo as ossadas de todos os devorados.

Dahmer, também real, seguia o mesmo padrão de guardar em casa as partes desmembradas dos mortos, num enorme botijão, com odor capaz de despertar suspeitas de uma vizinha. A polícia e os outros condôminos não lhe deram atenção: ela era negra, Dahmer branco. A diferença decide sobre as aparências de normalidade e de barbárie, uma divisão que, desde Shakespeare e sua peça "A Tempestade", está sintetizada na figura de Caliban (anagrama de canibal), opositor de Próspero, civilizador. O gênio da dramaturgia não desce, entretanto, ao mau gosto de encenar canibalismo nenhum.

Nisso também não incorreu o TSE ao proibir o uso do episódio na campanha eleitoral. Alegou falta de contexto: não fake news, pois o vídeo é verdadeiro. Mas interveio como censor moral, pois o relato, sem um "acredite se quiser" preventivo, é bárbaro até para a complacência de Brasília. Pensando como o moderno Próspero, o tribunal agiu como o questor romano Catão, o Velho (234-149 a. C), zelador dos costumes.

Claro, é inverídica a história. Nem sequer conteúdo da denúncia internacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. É lorota de mesa de bar. Questão séria é averiguar por que um homem público perpetra uma bazófia tão desrespeitosa de si mesmo e do país, para espanto de um dos jornais mais importantes do mundo. E problema realmente maior é a falta de explicação para o fato de que nenhum "homem de bem" entre seus adeptos pareça nauseado com o episódio. Como os vizinhos de Dahmer, tapam os narizes. Fascismo de acomodação, talvez. Mas essa indiferença, por si só, é canibal.

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