Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

O racismo e uma cidade no estado mais negro do Brasil

Ameaçada de morte, prefeita de Cachoeira, negra, vive em Salvador

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Nas ruas de Cachoeira, cada passante é parente socioestético de Vini Jr. Conhecida como "cidade heroica" no Recôncavo Baiano, dos seus 33 mil habitantes, 84% autodeclarados negros. Dali partiram as tropas de lavradores, comerciantes, escravos e forros que lutaram pela independência da Bahia em 1823.

Ativo centro cultural, é citada como cidade-monumento, pelo casario barroco, igrejas, irmandades e comunidades afrolitúrgicas.

Eleita pelo Republicanos, a atual prefeita é lavradora de profissão, curso médio completo. Sempre acompanhada por dois seguranças, mora em Salvador, capital, porque sobre ela pesam ameaças de morte. O motivo é único e claro como a cor da pele de onde procedem: ela é negra, a primeira a ocupar o cargo na cidade multicentenária.

Praça em frente à Câmara Municipal de Cachoeira - Rafael Martins - 20.jun.21/Folhapress

Vale frisar que essa aberração não é sulista, isto é, não é coisa de nenhum desses estados onde neofascismo brota como pinhão nas árvores ou bergamota à beira dos cercados. Muito menos da Espanha, onde despertaram zumbis franquistas. Ocorre na matriz mais afro da federação. Planta daninha transgênica, racismo não escolhe terreno para medrar.

A questão volta à cena com as massivas agressões espanholas a Vini Jr., mas também com críticas ponderáveis ao identitarismo. Argumenta-se que a adesão das esquerdas ao movimento identitário (gênero, antirracismo etc.) empurra o povo para a extrema direita. De fato, a esquerda clássica deslocou-se ideologicamente da metafísica revolucionária, caucionada pelo operariado como classe histórica, para a trama da dominação constituída por patriarcado e colonialidade.

Praça em frente à Câmara Municipal de Cachoeira, onde funcionava antiga prisão - Rafael Martins - 20.jun.21/Folhapress

O novo eco libertário fragmenta-se na dispersão das minorias. A comunicação progressista não se apoia, como na ideologia obreira, numa unidade comparável ao mito do trabalho feito "essência perdurável do homem" (Marx). Simplesmente afrouxar a camisa de força das hierarquias raciais, sexuais e coloniais periga ressuscitar o pior. Reacionário não discute: é só aparelho de ódio.

Mas perder discurso não é perder razão. É um aviso de que a justa argumentação não consegue transitar na pluralidade dos canais de diálogo, por estreiteza conceitual frente ao patriarcalismo, "poder habitado por um espírito-cão, um espírito-porco e um espírito-canalha" (Achile Mbembe). É o poder colonial de esvaziar o outro de seu conteúdo histórico. Contra isso é fraco o progressismo embalado pelos belos, mas abstratos, metadiscursos explicativos do mundo.

no pátio de uma cidade, uma multidão ergue os braços para o ar, celebrando. no canto da imagem, um homem ampara um homem negro que está ao chão, ferido
Reprodução do quadro 'O primeiro passo para a Independência da Bahia', de Antonio Parreiras (1930), que mostra brasileiros celebrando uma vitória contra os portugueses na praça central de Cachoeira - Reprodução

Assim o impasse identitário. Por um lado, atrai o ódio visceral de extremos, desde elites malévolas a neofascistas em flor. Por outro, mobiliza estratos até agora silenciados. A prefeita e seus eleitores são bom exemplo: convite à nação brasileira e à Espanha a tomar um banho de Cachoeira.

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