Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

A overdose de cada dia

Fé não se discute, mas o cabimento de projetos de ampliação da isenção tributária das igrejas sim

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O poeta e semiólogo Décio Pignatari relatou-me certa vez como produziu, por encomenda, a marca nacional de um óleo lubrificante para automóveis: programou no computador uma combinação de palavras oscilantes entre brasilidade e lubrificação, de modo a obter um resultado satisfatório. Faz pouco, o processo me pareceu reverberar numa rua de subúrbio do Rio, onde entrepostos religiosos ostentam variações de "primitiva de Cristo" a "tabernáculo de fogo". Há 150 mil deles no país, e crescem.

Fé não se discute, seja na eficácia de um óleo posto no mercado, numa divindade que passe tempo eterno contabilizando dízimos ou na sacralidade indiana da vaca. Scholars do pensamento social enxergariam com razão preconceito em argumentos contrários.

Culto realizado na Igreja de Obra e Restauração Cura e Milagre, em Praça Seca, na zona oeste do Rio de Janeiro - Tércio Teixeira -13.nov.22/Folhapress

A discussão pode incidir, entretanto, sobre o cabimento de projetos de ampliação da isenção tributária das igrejas que tramitam na Câmara. Livros, fora de cogitação. Ou então sobre a tragédia que seria a organização social da fé assumindo uma feição desmedida na exploração do povo-massa espiritualmente desenraizado e sofrido, com insidiosas inclinações políticas.

A palavra-chave para uma reflexão proativa está no "comum", que sempre se construiu como algo coletivo e diverso, mas que no âmbito de configurações religiosas estreitas é anulado pela mesmerização privatista (mistificação da prosperidade, rentabilização da crença) e pela ausência de fé em finalidades sociais. Cooperação e solidariedade são figuras de retórica pastorais.

Progressistas ainda perplexos com a penetração de discursos abstrusos da ultradireita na esfera civil teriam muito a ganhar com a leitura de Ernst Bloch, para quem "os homens querem ser enganados" (em "Princípio Esperança", 1976). Ele se referia aos anos de "estupidez funcional e sistêmica" da primeira metade do século passado, mas o diagnóstico permanece atual na ficcionalização eletrônica do mundo. Não se trata mais de "ópio do povo" (Marx) e sim da droga tecnologicamente fabricada como relação social na hegemonia ético-política do capital globalizado.

O fio que liga os polos verticais dessa fabricação é a magia redentora do dinheiro, atuante nos bilionários que tripulam espaçonaves pelo êxtase extraplanetário ou nos danados da Terra vulneráveis a logros sobre prosperidade individual. Passa despercebida a crueldade de se condicionar, como sanguessugas de esperança, a fé ao preço.

A metástase dos entrepostos com denominações aleatórias, um deepfake bíblico, desenha a face miserável do capitalismo convertido em religião. Uma pirâmide extrativista: no topo, lavam-se bilhões e se elegem bancadas parlamentares, enquanto na base lavam-se cérebros por overdose de fé integrista.

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