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Márvio dos Anjos

Livro de Nick Cave sobre fé impressionou até teólogo renomado

Fruto de conversa com jornalista, obra aborda mergulho religioso do roqueiro após morte do filho

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Márvio dos Anjos

Jornalista e crítico musical

[RESUMO] No ótimo livro "Fé, Esperança e Carnificina", o cantor e compositor Nick Cave se firma como uma das conversas mais interessantes do meio artístico ao falar de modo franco e reflexivo com jornalista sobre perder um filho, a busca da religião contra o desespero, a relação do divino com a música, a angústia da criação e bastidores dos atritos com a banda Bad Seeds.

Não é comum que líderes religiosos elogiem astros do rock, mas a carreira de Nick Cave não é exatamente livre de ineditismos. A pedido do jornal The Times, de Londres, o cantor e compositor australiano aceitou ser entrevistado, em março passado, por Rowan Williams, 72, ex-arcebispo da Cantuária (ou Canterbury) e um dos mais prolíficos intelectuais do cristianismo ocidental.

A conversa girou em torno de "Fé, Esperança e Carnificina", coescrito por Cave a partir 40 horas de conversas com o jornalista Seán o'Hagan. No Brasil, ele sai pela editora Terreno Estranho, com tradução de Carlos Messias (que já tinha vertido os poemas de "The Sick Bag Song").

O músico Nick Cave e o ex-arcebispo Rowan Williams na cerimônia de coroação do rei Charles 3º, em Londres - Peter Tarry-5.mai.23/Reuters

"Posso falar de pouquíssimos livros que tenham chegado de forma mais completa ao cerne da questão sobre como dor e criatividade trabalham juntos", escreveu Williams, no preâmbulo da entrevista feita em uma igreja no centro de Londres.

Um cenário apropriado, já que um dos assuntos que Nick Cave tem abordado cada vez mais é sua conciliação com a ideia de religião, o anseio por um Deus cristão e seu desinteresse por uma jornada mais cética, desde que seu filho Arthur morreu, em 2015, em acidente na costa de Brighton, Inglaterra.

O que poderia ser uma necessária busca de eixo após a morte do filho acabou se tornando a abertura de uma fase de conversação, iniciada com o lançamento da newsletter "Red Hand Files", em 2018.

Nela, Cave se dispõe a responder qualquer pergunta de seus fãs, desde aspectos do processo criativo a verdadeiras investigações a respeito dos estados mais angustiantes da alma.

Teve até que se defender da crítica de ter traído seu passado rebelde: alguns fãs não aceitaram sua presença na coroação de Charles 3º. "Sou simplesmente atraído por esse tipo de coisa —o bizarro, o fantástico, o espetacular, o assombroso", respondeu, sem grandes crises. Depois, disse ter ficado extremamente entediado na cerimônia, com exceção da música.

Por essa troca com os fãs ficamos sabendo, por exemplo, de suas obsessões, como a paixão pelos míticos pianos Fazioli, dos quais são lançados apenas 140 instrumentos por ano, e dos limites de sua fama: depois de ter telefonado aos donos da fábrica e nem sequer ser reconhecido, Nick se apresentará nos Estados Unidos no segundo semestre de 2023 com um Grand Fazioli às mãos.

Em 2019, Cave se arriscou em uma surpreendente turnê sem instrumentos nem canções, apenas para conversar com a plateia por uma hora. Por fim, com a pandemia, essa ligação direta com fãs assumiu um papel mais contemplativo, quase pastoral.

Não deixa de ser um culto à personalidade, mas a base disso —um diálogo sobre vulnerabilidades— parece ser o inverso mais radical da persona onipotente que os ídolos pop exibem nas redes sociais.

Agora, com "Fé, Esperança e Carnificina", que também gerou mais uma turnê de bate-papo pela Europa, o compositor comprova que é, de fato, uma das conversas mais interessantes de um meio artístico cada vez mais arredio ao ato da entrevista.

Nos papos recentes, Nick Cave parece saudavelmente distante do adolescente que fundou The Birthday Party, uma das bandas mais performaticamente violentas de que se tem notícia, ou mesmo do junkie que veio a São Paulo para se afastar da heroína, no fim dos anos 1980, levando as impressões daqui no álbum "The Good Son".

Já nas primeiras das 350 páginas do livro, o cantor e compositor de 65 anos se afirma como um homem "definido" pela morte do filho, como se tivesse sido uma existência apenas parcial até então.

Um dos grandes méritos do livro é contar com um perguntador tão bom quanto Seán o'Hagan. O jornalista irlandês demonstra uma medida equilibrada de tato e curiosidade (sem falar na ótima edição das conversas) ao lidar com um homem que optou por expor o luto em praça pública e tornar-se para-raios daqueles que, como ele, partilham de uma angústia não domesticável.

É como se a comunidade formada em torno do artista —seus fãs e admiradores, sejam intelectuais ou não— adentrasse uma sala de terapia, em que podemos refletir sobre a vida e ver esses reflexos sobre as dores de Cave.

A farta presença do tema religioso não surpreende quem acompanha seus álbuns com os Bad Seeds, com quem formou banda após o fim do Birthday Party.

Nick Cave atravessou os anos 1980 e 1990 salpicando suas canções de amor com referências ao cristianismo, em letras absolutamente eternas como "Into My Arms" e "Brompton Oratory" (ambas de "The Boatman's Call", 1998).

A matéria-prima vinha contada em histórias, canções em terceira pessoa, até pelo menos "Push the Sky Away" (2013). A partir dali, Cave começou a quebrar a linearidade das histórias e justapor imagens fascinantes para desfigurá-las no verso seguinte, ao mesmo tempo em que seu rock se tornava mais atmosférico e improvisacional, e os shows ganhavam ares de culto.

Em "Skeleton Tree" (2016) e "Ghosteen" (2019), porém, retorna o sentimento vertical da angústia do eu rumo a um céu sem saídas prontas. E daí resulta uma das respostas mais decisivas de Cave.

"Da minha posição, uma rejeição explícita ao divino não ajuda na hora de compor canções. O ateísmo não é bom para o negócio de fazer música. Ele te coloca em uma notável desvantagem, pois é uma espécie de limitação das opções e uma negação da dimensão fundamentalmente sagrada da música. É muito limitador, de acordo com a minha experiência. Muitas pessoas, claro, vão discordar, embora eu tenda a pensar que a maioria dos músicos tem mais tempo para essas considerações espirituais, porque quando fazem música, mergulham profundamente nela e se deparam com fortes indicações do divino."

Frequentemente, as respostas de Cave têm o elegante contorno de descrever uma experiência pessoal ao máximo, até finalmente abrirem a sugestão de um sentimento mais coletivo.

Em determinado momento, Cave rejeita se descrever como um "cristão tradicional", o que parece ter a ver com rotinas, mas não sem antes aceitar que há certo conservadorismo dele na escolha de como expressar essa religiosidade.

Que artista hoje em dia faria a opção de dizer que "espiritualidade" é uma palavra "um tanto amorfa para o meu gosto", já que "pode significar qualquer coisa"? Nada disso é dito sem que O'Hagan, que não se considera religioso, lhe ofereça a oportunidade de ponderar de forma mais cética.

Todavia, ainda mais interessantes são os insights que Cave joga a respeito de seu processo criativo, de como procura canais para um "reino mágico" de canções que, muitas vezes, se mostram premonitórias.

Há ainda registros anedóticos sobre sua difícil relação com Mick Harvey, que era o grande arranjador dos Bad Seeds até a chegada de Warren Ellis; sua transformação em pessoa insuportável em casa quando entra em processo de compor um disco; e sua profunda amizade com Chris Martin, do Coldplay, cuja intervenção foi definitiva para que a canção "Waiting for You" soe doce como a conhecemos atualmente.

Até o lado mais prosaico de "Fé, Esperança e Carnificina", quando o livro começa a se assemelhar aos registros em primeira pessoa comuns a tantas bandas, tem a capacidade de surpreender. Se há alguma ausência notável ao público brasileiro, é referente ao período de Cave em São Paulo, época em que conheceu a jornalista Viviane Carneiro, com quem teve um filho, Luke.



O grande mérito do livro é o de conduzir a conversa por um lado mais atemporal, em vez de se prender jornalisticamente a temas do presente digital, como a cultura do cancelamento e certo medo da arte contemporânea em ofender o público.

Cave não se furta a responder sobre isso, com perspicácia e generosidade, nos "Red Hand Files", mas aqui a conversa mira outra luz, mais crepuscular, numa atmosfera capaz de reconfortar um arcebispo enquanto os santos se calam.

Fé, Esperança e Carnificina

  • Preço R$ 105 (360 págs.)
  • Autoria Nick Cave e Seán O'hagan
  • Editora Terreno Estranho
  • Tradução Carlos Messias
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