Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Sinais exalados

O protofascismo é uma cesura social que penetra como estado de espírito no modo civilizatório

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Muniz Sodré

Uma cena neobrasileira. À beira da piscina do condomínio, o pacato vizinho, membro da classe médica, comenta à boca pequena: "Vejam o que fizeram com o homem...é a máfia!" Todos se conhecem, mas o silêncio que se segue é constrangedor. Antes, aparentemente, concordariam, não mais. O "homem" é o ex-mandatário, a "máfia" abrange entidades republicanas como o Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal. No noticiário desfilam acusações gravíssimas, que a alma condominial, cognitivamente dissonante, suprime para metaforizar a República como Don Corleone.

O então presidente Jair Bolsonaro caminha à frente de seu ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid, para receber o então presidente do Paraguai, Mario Abdo, no Palácio do Planalto - Adriano Machado - 12.mar.19/Reuters

Esse episódio corriqueiro, mas recorrente, é pretexto para observar a vida no seu acontecer específico e tentar trazer à luz aspectos originais do fenômeno da desorientação política, sem o automatismo das categorias normalmente usadas nas ciências históricas. A singularidade da vida pessoal comporta situações e manifestações irredutíveis às objetivações das estruturas sociais. Ignorância, ódio e interesses de classe são influentes fatores coletivos, porém é preciso voltar-se diretamente para a subjetividade enquanto vida histórica na recusa protofascista de enxergar a realidade.

Protofascismo não é exatamente nazifascismo instalado, e sim uma cesura social que penetra como estado de espírito no modo civilizatório. Na prática, uma síndrome análoga às afecções fronteiriças da personalidade que os psicanalistas conheceram como neurose de caráter e hoje se generaliza como "borderline". Um mal-estar ancorado em detalhes e pequenas causas. Sabe-se que, antes da Grande Guerra, os oficiais do exército inglês desprezavam Hitler, não porque fosse nazifascista, mas porque tinha sido cabo na vida militar e pintor de paredes na civil.

Raciocínio semelhante vale para o antilulismo figadal, aversão a um torneiro mecânico sem diploma superior. A confusão entre sindicalismo e revolucionarismo foi sempre má-fé interpretativa das elites. Igualmente, o argumento das pedaladas fiscais para o impeachment de Dilma, agora desmontado como razão de marmelo, foi fraseologia técnica para encobrir a urdidura parlamentar e a indignação senhorial pela PEC das Domésticas. Já o antipetismo entranhado na classe médica tem origem corporativista na vinda de profissionais cubanos.

Hoje como no passado, esquerdismo e comunismo são bichos-papões ideológicos de uma cidadania infantilizada. A subjetividade de largas frações de classes sociais orienta-se por preconceitos, firulas mesquinhas, não por fatores racionais. São sinais exalados de ruínas morais e ignorantismo chapado. Fanatismo não é, assim, insulto banal, mas justa caracterização da consciência protofascista. Não enxergar o real à frente, reduzindo o mundo a um clichê, é a sua lei suprema.

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