Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Criminal country

Inconcebível que 129 parlamentares sejam favoráveis à autoria da execução da vereadora Marielle Franco

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Num país cuja república rezou pelo catecismo positivista, apostando no progresso como desenvolvimento da ordem, é tentador invocar o evolucionismo de Augusto Comte para abordar situações sociais. Ainda que a involução dê a tônica. É o caso da segurança pública, que vira questão nacional, decisiva para avaliação do nível de vida, tanto por autoridades como por humildes componentes da cidadania urbana. Talvez seja hoje o único ponto de consenso entre elites e povo.

O problema é do país inteiro, mas o Rio oferece maior espelhamento pela magnitude da promiscuidade entre política e crime: o fato social desaparece num Triângulo das Bermudas da civilidade. Não mais Estado paralelo, mas "infiltração do Estado formal pelo crime", como sustenta o jurista Abel Gomes (em "Crime Organizado e suas Conexões com o Poder Público"). Milicianiza-se a existência, basta curto percurso de táxi para ouvir uma história de vida abusiva.

Policiais fazem ronda na Favela do Jacarezinho, zona norte do Rio
Policiais fazem ronda na Favela do Jacarezinho, zona norte do Rio - Tércio Teixeira - 27.jan.22/Folhapress

Na rotina de um motorista, morador do Complexo do Lins, o dia começa com a dificuldade de tirar o seu táxi da rua, bloqueada por barras de ferro. Paga a garotos para retirar e recolocar a barreira. Ao tráfico, paga taxa semanal, "gatonet" e ambígua garantia de segurança. Ainda assim, avalia estar melhor do que no Complexo de Israel, distante a quilômetros de sua casa, onde traficantes pentecostais tocam o terror com o "bonde de Jesus". Maior preocupação é o filho, estudante em Seropédica, onde milicianos cobram taxa para festas no espaço universitário ou nos quintais particulares. Detalhe: o cobrador recolhe a cota da milícia e a da polícia.

Na espoliação ultrajante espelhada numa história individual transparece o cotidiano de 60% do território urbano. Atingiu-se patamar catastrófico, não dá mais para encobrir a realidade com a opção da "avestruz" carioca, que recomenda à vítima silenciar a violência sofrida, "é feio".

Evolucionismo é evocação do positivismo para sugerir a passagem do estado de cleptocracia (algo como Putin e oligarcas russos) ao de criminal country, expressão americana para a disseminação do crime no corpo social, como células cancerosas na metástase: um país de criminosos. O estado evolutivo final, o humanismo positivista segundo Comte, regrediu a uma pulsação teológica, mergulho de cabeça no atraso.

Já em sobressalto, fica-se sabendo da vexatória leniência do STF com um "capo" da contravenção carioca. Mas a apertada votação da Câmara sobre a prisão de mandante do assassinato de Marielle ratifica o status de criminal country. Falou alto o medo da "famiglia": inconcebível que 129 parlamentares sejam favoráveis à autoria da execução de uma vereadora em exercício de mandato. Novamente se quebrou, por voto metafórico, uma placa com o nome da morta. Só que desta vez a baixeza é federal.

Plenário da Câmara durante votação da manutenção da prisão de Chiquinho Brazão
Plenário da Câmara durante votação da manutenção da prisão de Chiquinho Brazão - Pedro Ladeira/Folhapress

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