Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Desigualdade socioterritorial na política cultural

Sem levar cultura às periferias, não se enfrentará a violência

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Das políticas públicas sociais, a cultura é, provavelmente, a que apresenta a mais forte desigualdade socioterritorial. Isso explica porque os bailes funk, uma das poucas alternativas de lazer gratuito para os jovens na periferia, ocorrem de forma improvisada nas ruas estreitas das áreas de vulnerabilidade social, causando barulho, interrupção do trânsito, sujeira e forte incômodo para os moradores.

Além da polícia ter que alterar a maneira como lida com a população negra e periférica, o enfrentamento dos conflitos gerados por esses eventos requer que a prefeitura priorize as ações culturais voltadas para a periferia

Reverter a histórica concentração de recursos e eventos no centro expandido, onde estão os principais eventos, como a Virada Cultural, os grandes equipamentos e onde se gasta cerca de 85% do orçamento municipal para cultura é indispensável.

Na educação e na saúde, apesar da qualidade sofrível, conseguiu-se, após décadas de esforços, prioridade e vinculação de receita, constituir uma rede de escolas e centros de saúde relativamente bem distribuída na maior parte da cidade, inclusive nas áreas de vulnerabilidade social. 

Já na cultura, ainda estamos engatinhando e mesmo com o esforço de algumas gestões, a concentração ainda prevalece. Se a situação ainda é grave, algumas iniciativas realizadas nos últimos 15 anos apontaram caminhos que precisam ser seguidos e aprofundados, como:

  1. A criação, em 2003, do VAI - Programa de Valorização das Iniciativas Culturais (Projeto de Lei de minha autoria), voltado para apoiar pequenos projetos culturais de jovens em áreas de vulnerabilidade social. Até então, inexistia qualquer programa público de fomento à cultura periférica. Em 2014, foi criada uma segunda modalidade, o VAI 2. Até 2018, o VAI apoiou mais de 2.000 projetos culturais na periferia. 
     
  2. A criação dos CEUs, em 2004 (gestão Marta Suplicy), os primeiros grande equipamentos culturais, implantados nas 21 subprefeituras consideradas de grande vulnerabilidade social. Em 2016, foi criada, em 17 CEUs, a rede SPCine de salas de cinema, com tecnologia de última geração e programação atualizada.
     
  3. A criação do Centro Cultural da Juventude, em 2006 (gestão José Serra) na Cachoerinha, até hoje o único do gênero existente na cidade, e do Centro de Formação Cultural da Cidade Tiradentes, em 2012 (gestão Gilberto Kassab), único equipamento de grande porte existente na extrema periferia. O Plano Municipal de Cultura (2016) estabeleceu uma estratégia para ampliar a rede de equipamentos culturais na periferia.
     
  4. As inúmeras iniciativas tomadas entre 2013 e 2016 (gestão Fernando Haddad), para fortalecer a cidadania cultural, como o Programa Aldeias, voltado ao fortalecimento da cultura indígena; os 85 Pontos de Cultura, apoiando iniciativas de entidades locais, priorizando a periferia; a criação dos agentes comunitários de cultura e do Programa de Fomento à Cultura Periférica. Somados ao VAI, esses programas elevaram de R$ 3,9 milhões, em 2012, para R$ 20,8 milhões, em 2016, os recursos aplicados no fomento a projetos voltados à periferia. Nem todos esses programas tiveram continuidade após 2017.
  5. As várias iniciativas tomadas entre 2013 e 2016 para descentralizar a programação cultural e promover eventos em toda a cidade e durante todo o ano, Além da descentralização da Virada Cultural e da criação do Circuito Municipal de Cultura (hoje desativado), para garantir a ocupação dos equipamentos foram criados nas várias regiões da cidade eventos como o Mês do Hip Hop.

Embora tenha se avançado no apoio à cultura periférica frente ao nada que existia, ela ainda é marginal na política municipal. Vale dizer que mais de 20% do orçamento da Secretária de Cultura vai para o Theatro Municipal e que em 2019 se gastou na Virada Cultural, em apenas 24 horas, cerca de R$ 18 milhões, mais do que o dobro do que se investiu o ano todo em mais de uma centena de projetos do VAI e do Fomento a Periferia (R$ 8,4 milhões).

Dentre as iniciativas da gestão Haddad, o Funk SP se relaciona com os eventos de domingo passado. A prefeitura apoiou, com infraestrutura e segurança, a organização de bailes funk em locais adequados, afastados das áreas residenciais, em regiões periféricas da cidade. Garantindo o protagonismo dos organizadores e artistas locais, se ofereceu alternativa gratuita para os jovens. A experiência requer aperfeiçoamento, mas é uma referência para se formular um programa voltado para o funk, buscando estimular de forma sadia a economia local e garantindo segurança, sem repressão policial.

A gestão municipal precisa dar mais prioridade à periferia, implementando ações previstas no Plano Municipal de Cultura. Como mostrou a ombudsman da Folha, Flavia Lima, em sua excelente coluna “A gente não ama Paraisópolis” neste domingo (8), a imprensa cultivou a indiferença com as periferias. Como a cultura periférica é quase invisível, os gestores da cultura devem superar a preocupação de ganhar visibilidade na mídia e voltar os olhos para a maior parte da cidade.

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