Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Flavia Lima

A gente não ama Paraisópolis

A imprensa cultivou a indiferença com as periferias e precisa reconstruir a relação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Na madrugada de domingo (1º), ação da Polícia Militar em um baile funk na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, resultou na morte de nove jovens.

Veículos da grande imprensa deram destaque ao ocorrido, ouvindo os moradores e reproduzindo os vídeos feitos pela própria comunidade, em uma tentativa de entender o desfecho perverso da festa. 

Ilustração mostra vista de cima de pessoas caminhando numa espécie de labirinto de pregos gigantes
Carvall

Na terça-feira (3), o destaque foi um editorial do jornal O Estado de S. Paulo com críticas contundentes à ação da polícia, cujo "despreparo acintoso" pôs em risco a vida de 5.000 pessoas em um episódio de violência que o concorrente qualificou de "inaceitável".

Em editorial, a Folha só foi se pronunciar na quarta-feira (4). Antes disso, apresentou reportagem com as versões divergentes da PM sobre as mortes e um perfil dos jovens feito pelo jornal Agora, do Grupo Folha

Mas enfiou os pés pelas mãos num texto curto ("Mesmo após as mortes, pancadão continuou por mais 5 horas"), que misturou, sem a menor contextualização, as mortes, o problema do som alto das festas em vias públicas nas favelas, bebidas, drogas e até a facção PCC. 

Se a ação tivesse ocorrido numa festa em lugar central, é provável que a Redação tivesse pensado melhor antes de embaralhar tudo isso. 

A distância (física e emocional) entre os grandes jornais e as periferias ainda é grande, o que é um obstáculo porque, no geral, é possível refletir com mais empatia sobre os problemas e lugares que conhecemos. 

Quantas vezes o repórter não tem ideias para matérias zanzando por Perdizes, em São Paulo, ou pela zona sul do Rio?

Há um aspecto importante também: as pessoas que moram nas periferias e trabalham nas Redações dos grandes jornais estão em minoria.

Desconfio de que, mesmo entre aqueles que vivem nos bairros mais afastados, exista autocensura, um entendimento prévio de que certos assuntos não interessam ao leitor.

O resultado disso é que os veículos alternativos, mais preocupados em mostrar o que se passa nas comunidades, têm mais facilidade de acesso a depoimentos e vídeos.

Houve avanços na cobertura? É claro que sim.

Os programas televisivos que estimulam a visão degradante dos mais pobres sobrevivem, mas a abordagem dessa realidade tem melhorado, sobretudo a do jornalismo impresso.

Há poucos anos, em situações de violência nas periferias, os jornais só descreviam o nome e a idade das vítimas. Outros detalhes eram ignorados. Para que oferecê-los se as situações eram recorrentes?

As redes sociais mudaram um pouco esse jogo. Elas mostram que o que ocorre nas "favelópolis" Brasil afora tem eco e obrigam a imprensa tradicional a correr atrás dos fatos.

 

Levantamento feito no site da Folha mostra que, há dez anos, entre dezembro de 2008 e de 2009, o bairro de Guaianases, no extremo leste de São Paulo, aparecia em cerca de 70 matérias publicadas nas plataformas da Folha e, sobretudo, no Agora.

Alagamentos, problemas no transporte coletivo e crimes lideravam as citações. No período, foram apenas duas matérias positivas sobre a região, entre as quais um perfil de um artista que nascera ali.

Nos últimos 12 meses, a quantidade de menções à região foi mais ou menos a mesma. O número de matérias positivas, porém, subiu para 15.

Entre elas está a divulgação de cursos, shows e restaurantes na região, a maior parte das quais produzidas pela Agência Mural —parceiro do jornal cujo foco é a cobertura das periferias da Grande São Paulo.

Vale observar que, no mesmo período, o bairro de Pinheiros é citado mais de mil vezes em todo tipo de abordagem.

Ausente das periferias, a imprensa reforça uma espécie de linha entre nós, a civilização, e eles, os bárbaros.

Ao construir essas barreiras, não deixa lugar para aproximação. Quantas não foram as reportagens que martelaram conexões rasas do baile funk até com a gravidez indesejada.

Parte da imprensa, da classe política e da sociedade flerta com a representação do funk como a trilha sonora da criminalidade, sustentada por representações estigmatizadas da juventude pobre e negra que vive nas favelas. O samba e o rap já ocuparam esse lugar.

Há uma cobrança difusa de que o "problema" das favelas seja resolvido pela polícia, cuja presença repressiva responde aos anseios da população.

Pouco se questiona a cultura institucional das polícias, orientadas por princípios que legitimam a violência. Culpa-se um policial, mas não se discute como a corporação se formou.

A insensibilidade atávica das classes mais abastadas em relação à população periférica foi refletida e cultivada pela imprensa, cujos textos simplificados sugeriam: não há nada com que se preocupar aqui.

É preciso reconstruir essa relação e mostrar o retrato em toda a sua complexidade: as periferias são não apenas o território da insegurança e da falta de políticas públicas, mas também um lugar do trabalho, do embate político e do lazer.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.