Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Sem políticas urbanas contra a pandemia, Prefeitura de SP cerca a praça do Pôr do Sol

Imaginem se o Rio de Janeiro colocasse uma grade ao redor do Arpoador

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Com tantos problemas urbanos para serem enfrentados durante a pandemia, chega a ser grotesco a gestão Bruno Covas (PSDB) ter gasto cerca de R$1,5 milhão em uma região privilegiada de São Paulo para cercar a praça do Pôr do Sol, inicialmente com tapumes de obra e, agora, com um horroroso alambrado tipo “tela de galinheiro”. Insatisfeitos e buscando reverter a iniciativa da prefeitura, moradores e frequentadores abraçaram a praça neste domingo (28).

São poucos os espaços públicos com a qualidade dessa área de 31 mil metros quadrados no Alto de Pinheiros, doada pela Companhia City para a prefeitura, em 1925, como área de uso comum do povo.

Projeto das renomadas arquitetas paisagistas Rosa Kliass e Miranda Magnoli nos anos 1970, a praça foi implantada em um declive como um privilegiado mirante para o poente. Por isso, passou a ser procurada pela população de toda a cidade, para usufruir da bela paisagem garantida pelo zoneamento que limita a verticalização do entorno.

A crescente concentração de pessoas “diferenciadas”, que utilizam o espaço para encontros de jovens, com música e consumo de álcool e drogas, sem limite de horário e com grande geração de resíduos, vinha causando incômodo e insegurança aos moradores da vizinhança.

Há anos, eles reivindicam uma ação da prefeitura para conter abusos, e passaram a defender o cercamento do espaço para controlar o acesso à área. A proposta, no entanto, tem a oposição de frequentadores e urbanistas, pois limita o uso do espaço público.

Em 2015, um decreto do então prefeito Fernando Haddad (PT) transformou a praça em parque, o que poderia permitir o gradeamento do local e tornaria obrigatória a formação um conselho gestor, eleito pelos moradores e frequentadores.

De acordo com a Lei 15.910, de 2013 (de minha coautoria), os conselhos gestores são um instrumento que objetiva uma gestão participativa no planejamento, gestão, avaliação e controle da execução das atividades dos parques. Assim, a decisão de gradeamento precisaria passar pelo conselho, eleito em 2016, com vários membros que se opunham à ideia.

Em 2017, o então prefeito João Doria (PSDB) revogou o decreto de Haddad, e o parque voltou a ser praça. O Conselho Gestor foi extinto, apesar de a Lei 16.212/2015 (também de minha autoria), ainda não regulamentada pelo Executivo, permitir, sem obrigar, a gestão participativa de praças.

Cerca de uma dúzia de pessoas estão lado a lado na calçada ao redor da praça, em frente aos tapumes que a cercam. No tapume há a pichação "A praça é do povo"
Manifestantes do Coletivo #PorDoSolSemCerca abraçam a praça do Pôr do Sol, no Alto de Pinheiros, em protesto contra o cercamento da praça pela gestão Bruno Covas (PSDB) - Coletivo #PorDoSolSemCerca

No início da pandemia, em abril, a prefeitura aproveitou a comoção e o isolamento social para cercar a praça com tapumes de obra e proibir o acesso de qualquer cidadão, supostamente para evitar aglomerações. Como resultado, até mesmo os paulistanos que circulam pelas ruas do entorno ficaram sem a vista da praça e do pôr do sol.

Calcula-se que o custo dessa operação foi de cerca de R$ 800 mil. Talvez tenha sido a única das 5.000 praças de São Paulo que tenha recebido esse tratamento, o que evidencia a forma diferenciada como as regiões da cidade são tratadas pela prefeitura. Muitos bairros periféricos não têm nem sequer uma praça, mas não passou pela cabeça de ninguém propor o cercamento de ruas ou espaços públicos da cidade onde ocorrem aglomerações. Por que o tratamento diferenciado dado a uma praça no Alto de Pinheiros?

No início deste ano, sorrateiramente, sem nenhum debate com a sociedade e como se não tivesse nada mais importante para fazer em uma cidade imersa em uma pandemia que já ceifou 26,7 mil vidas, entre casos confirmados e suspeitos, a gestão Bruno Covas atendeu às associações de moradores do Alto de Pinheiros e do Jardim Boaçava e está trocando os tapumes por um alambrado de tela de galinheiro, gastando mais R$ 652 mil, em uma ação que ninguém sabe se é provisória ou definitiva. O argumento continua sendo evitar aglomerações!

É inegável que existem problemas de gestão da praça e conflitos entre moradores e frequentadores. Mas isso não será resolvido criando mais muros e privando o direito dos cidadãos, independentemente de classe social e local de moradia, de usufruir dos espaços públicos da cidade. É uma ilusão achar que com cercas os problemas de lixo, barulho e segurança serão resolvidos.

Cabe à prefeitura enfrentar esses conflitos com participação, diálogo, educação ambiental e fiscalização. Como todas as praças da cidade, há insuficiência de lixeiras, a iluminação é deficiente, inexistem banheiros públicos e a vigilância é precária. Equacionar a solução dessas carências, com a contribuição da sociedade, é o papel do poder público.

A impressão que temos é que a prefeitura está perdida no enfrentamento das questões urbanas que emergiram ou se agravaram na pandemia, enquanto se dedica a problemas secundários com respostas equivocadas.

Enquanto gasta recursos em cercar uma praça em uma região privilegiada, problemas urbanos como o crescimento da população em situação de rua, lotação no transporte coletivo, falta de equipes de limpeza em 530 escolas na reabertura das aulas, festas clandestinas e aglomeração de jovens nas ruas, se agravam sem resposta.

Vistas para o poente, com belos cenários do pôr do sol, são pontos de referência nas cidades, que não podem ser obstruídas por grades, cercas, muros ou edifícios altos, nem ter o acesso controlado. Imaginem se a Prefeitura de Salvador fosse gradear a praia do Forte, o Rio de Janeiro colocasse uma cerca ao redor do Arpoador e Porto Alegre, ao longo da orla do Guaíba, todos lugares excepcionais no final da tarde? Seria um escândalo! Mas é isso que estão fazendo na praça do Pôr do Sol.

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