Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Coronavírus Folhajus

Cúmplice do genocídio, Kassio permite que templos virem locais de suicídios coletivos

Espera-se que a decisão de abrir igrejas seja revertida no plenário do Supremo, pela vida

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Suicídios coletivos de membros de seitas religiosas estimulados por líderes messiânicos não são incomuns. Desde 1978, ocorreram inúmeros eventos do gênero, em diferentes países e com variadas motivações, que chocaram o mundo pelo fanatismo. Mas nada próximo do que está prestes a acontecer no Brasil.

Até agora, o caso mais famoso e com o maior número de vítimas ocorreu na Guiana, em 1978. O pastor americano Jim Jones, criador da seita cristã Templo do Povo, incitou os membros da sua “comunidade” a cometerem suicídio ingerindo suco de frutas misturado a cianureto. Nada menos do que 914 pessoas se mataram, incluindo 304 crianças.

A maioria dos membros da seita era formada por americanos negros pobres. Eles seguiram o pastor quando ele decidiu transferir a seita de San Francisco (Califórnia) para a selva das Guianas, onde fundaram, em 1973, a “Jonestown”, que pretendia ser uma “sociedade ideal” na floresta. Promessas religiosas fazem com que pessoas desesperançadas percam a consciência e cometam qualquer tipo de loucura.

Novecentos e catorze mortos parecerá pouco em comparação com o que poderá ocorrer no Brasil se o plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) não reverter imediatamente a decisão estapafúrdia do ministro Kassio Nunes Marques, que liberou a realização de cultos e missas presenciais em todo o país.

Kassio, o primeiro ministro indicado por Bolsonaro para o Supremo, respondeu a uma arguição de uma associação evangélica, que não tinha credenciais para fazê-la, e decidiu que é proibido proibir cultos religiosos, ou seja, que prefeitos e governadores não podem mais, em nome da saúde pública, impedir a realização de cultos e missas presenciais. Descemos mais um degrau no aprofundamento do genocídio!

A decisão do ministro não tem fundamentação jurídica. O Supremo já havia firmado posição dando autonomia para os entes subnacionais estabelecerem medidas de controle sanitário, concomitantemente ao federal. Ademais, a legislação ambiental e sanitária estabelece que os entes locais podem definir regras mais rígidas que os níveis estaduais e federal, se as condições locais assim requererem.

Em meio a uma pandemia que matou 67 mil brasileiros em março e que poderá provocar 100 mil óbitos em abril se o isolamento social não for respeitado, é evidente que a realização de cultos e missas em ambientes fechados irá acelerar ainda mais a disseminação da Covid-19. É tudo o que não estamos precisando.

Com os hospitais e UTIs lotadas, com o vírus (e sua variante P.1, supercontagiosa) circulando aceleradamente em todo o país e com cerca de 2 milhões de casos novos apenas no mês de março, permitir encontros presenciais de centenas e até milhares de pessoas em uma infinidade de templos, mesmo com 25% da sua capacidade do espaço e com o uso de máscaras, equivale a autorizar a contaminação e a possível morte de fiéis. Em nome do quê? Liberdade religiosa? A mesma que levou ao suicídio coletivo a seita Templo do Povo?

O argumento de que a proibição de cultos presenciais é uma restrição à liberdade religiosa é uma falácia. Como afirmou o padre Júlio Lancellotti, o conforto espiritual pode ser levado através de cultos online. “As missas de domingo são seguidas por até 15 mil pessoas pela internet. Nunca celebrei uma missa presencial para essa quantidade de fiéis.”

Em 2017, existiam 67.951 entidades registradas na Receita Federal sob a rubrica de “organizações religiosas ou filosóficas”, que contam com total imunidade tributária. O número exato de templos existentes no país é desconhecido, mas podem-se avaliar em centenas de milhares. Com essa impressionante capilaridade, elas são uma imensa máquina arrecadatória e têm, potencialmente, uma enorme capacidade de disseminar o vírus.

No município de São Paulo, segundo a prefeitura, havia cerca de 5.800 templos religiosos, em 2019. O número real deve ser muito maior. A celebração de cultos em todos esses lugares gera enorme movimentação de pessoas, exatamente o que deve ser evitado nesse momento da pandemia.

A imensa maioria dos templos é de pequena dimensão e está instalada em garagens ou salões encravados no meio de construções nas periferias, sem janelas e circulação natural de ar. São locais fantásticos para a transmissão da Covid-19. A fiscalização do número de presentes e do uso de máscara é impossível frente ao grande número de locais e sua dispersão nas periferias.

Já as igrejas maiores, como o Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus (99 mil metros quadrados com capacidade para mais de 10 mil pessoas sentadas), mesmo com a lotação limitada a 25%, geram o deslocamento de milhares de pessoas, aglomeração nas entradas e saídas dos cultos e proximidade entre as pessoas, como se viu na Igreja Mundial do Poder de Deus no domingo de Páscoa.

Os cultos são longos, envolvem cantorias em voz alta, preces, abraços e apertos de mão, práticas que promovem contatos humanos potencialmente transmissores do vírus. Nessas condições, as igrejas vão se tornar verdadeiros “covidários”.

Nesse momento de tantas dificuldades, é compreensível que muitas pessoas, sobretudo as mais vulneráveis e humildes, busquem as igrejas como um local de acolhimento, de conforto religioso e de apoio material e espiritual. Mas as verdadeiras igrejas podem encontrar formas seguras de dar esse apoio religioso sem expor os fiéis ao risco de contrair uma doença grave.

Muitas outras aproveitam desse genuíno sentimento popular para estimular os fiéis a frequentarem as igrejas, fonte de renda para suas organizações. Não por acaso, Malafaia e Feliciano vibraram com a decisão de Kassio, que também é apoiado pelo advogado-geral da União, André Mendonça, e pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, aliados ou indicados por Bolsonaro. Todos são cúmplices do verdadeiro genocídio que está ocorrendo no Brasil e parecem querer aprofundá-lo.

Espera-se que a decisão do ministro Kassio Nunes Marques seja revogada pelo plenário do Supremo ainda essa semana. Em nome da vida.

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