Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu trânsito

Queridinha de Bolsonaro, a motocicleta é o modal que mais cresceu, mais mata e mais polui no Brasil

Um terço da frota de veículos no país é formado por motos, que correspondem a 74% de todas as indenizações do seguro obrigatório por acidentes e mortes

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A mortandade causada por acidentes com motocicletas pode ser comparada a uma guerra como a da Síria e é quase tão grave quanto a pandemia do coronavírus.

Segundo dados do Dpvat (seguro obrigatório para danos causados por veículos), o total de vítimas por acidentes com motos alcançou 3,3 milhões entre 2009 e 2018. No período, cerca de duzentas mil pessoas morreram e 2,5 milhões se tornaram permanentemente inválidas para o trabalho. São números impressionantes, que um presidente da República não poderia ignorar.

Problemas como esse, entretanto, estão longe de preocupar Bolsonaro, que flerta com guerras, mortes e sofrimento das pessoas. No Dia dos Namorados, ele promoveu um festival de barbaridades em uma cafona motociata de 130 km, que saiu da Zona Norte de São Paulo, foi até Jundiaí e voltou para o Ibirapuera, interditando a rodovia dos Bandeirantes, congestionando o trânsito e gerando poluição e barulho na cidade. E, o pior, desmoralizando as regras de trânsito.

A motociata não teve nenhuma mensagem de utilidade pública que justificasse tal desperdício. Demonstração machista de virilidade e poder, como mostrou artigo de Maria Homem na Folha, o evento foi um ato de campanha eleitoral, patrocinado pelo dinheiro público. Além das despesas do governo federal (que precisam ser apuradas), o custo da brincadeira foi estimado em R$ 1,8 mi pela Polícia Militar, com 1.433 policiais e 600 viaturas desviados da segurança da cidade. Polícia que, no final, recebeu um elogio presidencial: “tenho certeza que a PM estará junto comigo no cumprimento da lei e da ordem”.

Ao mesmo tempo em que desestimulou os brasileiros a se precaverem contra a Covid 19, comparecendo sem máscara e promovendo aglomeração, o presidente liderou milhares de motociclistas sem utilizar um capacete habilitado pelo Conselho Nacional de Trânsito, equipamento indispensável para evitar mais mortes e invalidez.

Trata-se de um infração gravíssima, a ser punida com multa, suspensão do direito de dirigir e recolhimento do documento de habilitação. Se a lei fosse ser cumprida, o batalhão de policiais presentes teria impedido o presidente de continuar dirigindo. Estaria ele testando a ilegalidade para ver até onde pode descumprir a lei sem ser incomodado?

Se tivéssemos um presidente preocupado com a vida, a crescente presença das motos seria um foco prioritário das políticas urbanas. É o modal que mais cresceu no Brasil nas últimas décadas. De acordo com o Mapa de Motorização Individual realizado pelo Observatório das Metrópoles, a taxa de motorização passou de 6,9 motos por cem habitantes para 12,8 motos por cem habitantes, entre 2008 e 2018.

Nesse período, o número de motos mais que dobrou, saltando de 13 milhões para 26,7 milhões, um crescimento de 105%, muito mais elevado que o aumento da frota de automóveis, que cresceu 77%. Embora forte em todo o país, o crescimento da frota de motos foi maior no Nordeste, com uma variação de 180%, e nas cidades médias e pequenas que não integram as regiões metropolitanas. Estima-se que hoje existam 20 milhões de motos em circulação no país.

Na maioria dos pequenos municípios, o mototáxi é a única alternativa de transporte público, modalidade que deverá crescer com a desestruturação do transporte coletivo que, lamentavelmente, está em curso. No interior do país, predomina a falta de fiscalização e o desrespeito à utilização de equipamentos de segurança.

Nas grandes cidades, as motos são essenciais no crescente segmento de entregas por aplicativo, delivery e e-commerce. As condições de trabalho e remuneração nesse setor são aviltantes, provocando a extensão da jornada e maior imprudência no trânsito.

Embora as motos representem cerca de um terço da frota de veículos no país, a maioria das mortes no trânsito são de motociclistas, sendo responsáveis por 74% de todas as indenizações do DPVAT. O risco de acidente grave com motocicleta é 5 a 10 vezes maior do que com um veículo de quatro rodas, segundo Horácio Augusto Figueira, especialista em transportes e segurança do trânsito.

A intensificação do uso das motos, além causar mais acidentes e mortes, potencializa a emissão de poluentes, com potencial risco à saúde. O atual nível de emissão de poluentes de motos é muito elevado, alcançando, em média, cinco vezes mais do que o nível dos carros. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), no Brasil morrem mais de 51 mil pessoas por ano em função dos males provocados pela poluição atmosférica.

O crescimento da frota de motocicletas é inevitável, mesmo que se reduza o forte incentivo fiscal que beneficia o setor, pois suas vantagens em relação aos demais modais (baixo custo, flexibilidade, versatilidade etc.) são inegáveis. Por isso, é essencial atacar os seus dois principais problemas: a segurança e o efeito poluidor.

Em relação à segurança, os governos precisam investir em educação e qualificação dos motociclistas e motoristas, reduzir a velocidade nas vias e estradas, fiscalizar o uso dos equipamentos de segurança e proibir a circulação das motos no corredor entre os carros. Tudo ao contrário do que vem fazendo o governo Bolsonaro.

Em relação ao controle das emissões, é necessário ampliar a durabilidade de fábrica dos catalisadores (filtros contra poluentes) usados em motocicletas, hoje estabelecido em 18 mil km de rodagem. O Programa de Controle da Poluição do Ar por Motociclos (Promot) propunha 35 mil km, mas o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) aprovou a proposta da indústria, apoiada pelo ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, determinando que os catalisadores tenham, a partir de 2023, uma durabilidade de apenas 20 mil km. Como as motos rodam, em média, mais de 30 mil km por ano, os filtros ficam inoperantes a curto prazo.

Como se vê, além de promover motociatas eleitorais, o presidente que ama as motocicletas nada tem a propor para proteger a vida e a saúde dos motociclistas.

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