Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade Virada Cultural

O ocaso da concepção original da Virada Cultural

De um dos maiores eventos culturais do mundo, a virada se tornou este ano uma espécie de festival musical

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Foi triste passar a noite de sábado e a madrugada de domingo no centro de São Paulo, enquanto ocorria uma Virada Cultural desfigurada e confinada ao vale do Anhangabaú, onde cinco palcos se apertavam em um espaço cercado, com uma programação pouco diversa.

O primeiro choque foi ver o viaduto de Chá, a praça Ramos de Azevedo e as históricas escadarias da Líbero Badaró cercadas com tapumes, isolando visual e fisicamente o Anhangabaú do entorno, como se ele fosse um pedaço apartado da cidade.

Já decepcionado, passar pelas entradas controladas e pela revista policial, obrigatória para chegar à arena de eventos, não foi o pior.

Show de Mc Kevinho no vale do Anhangabaú, na noite de sábado (28)
Show de Mc Kevinho no vale do Anhangabaú, na noite de sábado (28); Virada Cultural se tornou uma espécie de festival de música em 2022 - Jardiel Carvalho - 28.mai.22/Folhapress

Péssimo mesmo foi comprovar que isso era inútil, dada a dimensão dos arrastões e a violência presentes no interior do espaço, que está estampada no noticiário dos jornais. Basta dizer que o funkeiro Kevinho teve que encerrar abruptamente seu show, meia hora antes do previsto, depois de alertar: "Se continuar a briga, eu não vou mais cantar".

Meio saudosista, lembrei-me da primeira edição, em 2005 (Gestão Serra), quando, encantados, circulávamos livremente pelo centro, entre os inúmeros palcos espalhados pelos largos, praças e avenidas, que ganhavam novos contornos com os sons, as imagens e s cores das manifestações artísticas e com a diversidade de tribos que circulavam pelo pedaço.

Entre um espetáculo e outro, íamos encontrando pessoas de todas as classes sociais e regiões da cidade, maravilhados e com um sorriso nos lábios com aquela simbiose entre espaço urbano, sociabilidade e manifestações culturais.

Muito mais do que um festival de atrações artísticas, a concepção original da Virada Cultural, formulada pelo gestor cultural José Mauro Gnaspini, era promover uma reocupação do espaço público, uma revisitação do centro histórico e uma convivência de fãs de uma gama variada de gêneros musicais e artísticos, de diferentes faixas etárias e segmentos sociais na cidade.

Essa proposta generosa, de acolhimento, urbanidade, sociabilidade e cultura, foi recebida com entusiasmo pelos paulistanos e, entre 2005 e 2016, ela teve continuidade e crescimento nas gestões Kassab e Haddad.

Embora arrastões, furtos e a violência tenham também crescido, eles foram enfrentados sem limitar a circulação das pessoas, melhorando a iluminação, povoando as ruas entre os palcos (onde ocorriam os furtos) com barracas de alimentação, melhorando a interlocução com a polícia e outras iniciativas necessárias para melhorar a segurança de uma maneira geral. Uma cidade povoada é mais segura.

Briga durante show do MC Kevinho no vale do Anhangabaú
Briga durante show do MC Kevinho no vale do Anhangabaú - Jardiel Carvalho - 28.mai.22/Folhapress

Com essa concepção, a Virada integrou e fortaleceu o processo de valorização do espaço público e de transformação da cidade em uma arena cultural, livre, democrática e gratuita. Ela inspirou um ciclo virtuoso de iniciativas que, entre outros, gerou a ressignificação do Minhocão como espaço de lazer, o Carnaval de Rua, a Paulista Aberta e a disseminação do grafite como arte pública.

A distribuição dos palcos pelo centro, cada qual com um gênero musical ou manifestação artística diferente, levava os frequentadores a ter experiências culturais diferentes daquelas a que estavam acostumados a ter, em um processo de enriquecimento cultural que é próprio das grandes metrópoles cosmopolitas.

Na Virada de 2015, que tive a oportunidade de supervisionar como Secretário Municipal de Cultura, instalamos 41 arenas culturais apenas na área central, com enorme variedade e diversidade, que atraía diferentes públicos.

O rap e cultura popular estavam no palco do Anhangabaú, a cultura periférica no tablado da Pedro Lessa, a Jovem Guarda no palco da São João, o circo no largo do Paissandu, o teatro no palco do Copan, o piano na praça Dom José Gaspar, a dança na praça das Artes, um "galinhódromo" ocupava a praça Roosevelt, o Arraial de Inesita Barroso, a praça da República, e a viradinha infantil, a praça Rotary. Na Júlio Prestes, o maior de todos, subia ao palco artistas como Caetano Veloso, Emicida e Fábio Jr. A lista é muito maior, mas isso é suficiente para se recordar a diversidade presente na Virada.

Respondendo à crítica de que a Virada privilegiava o centro, foi sendo implantada uma descentralização sem descaracterizar seu espírito original. Em 2016, a Virada teve cerca de 450 espetáculos fora do centro, em todas as subprefeituras, incluindo grandes palcos na periferia. Nesse sentido, a propalada descentralização realizada neste ano nada tem de novidade.

A partir de 2017, a gestão Doria teve a ideia de confinar a Virada em espaços controlados, como o autódromo de Interlagos e o Anhembi (equipamentos públicos em processo de privatização), embrião da concepção que acabou implantada no centro em 2022. Mas, ainda assim, dada a inércia e apelo que a Virada adquiriu, a concepção original resistiu por alguns anos até a abrupta interrupção provocada pela pandemia.

O retorno da Virada, confinada no Anhangabaú, que foi concedido a uma empresa privada, cercada por tapumes, com entrada controlada, suprimiu de vez a concepção original desse que foi um dos maiores eventos culturais do mundo e que marcou uma tentativa de reabilitação e ressignificação do centro de São Paulo.

Neste ano, ela se tornou uma espécie de festival musical, como o Lollapalooza, o Rock in Rio e muitos outros existentes no país, perdendo sua relação e simbiose com a política urbana, embora mantendo seu caráter público e gratuito.

Pergunto-me se seria possível, no quadro de crise econômica, social e urbana da São Paulo de 2022, que se transformou em um imenso acampamento de sem teto, promover uma Virada de acordo com sua concepção original? Não resta dúvida de que ela precisaria ser repensada, em novas bases, para voltar a ter a importância passada.

Afinal, quase todas as praças estão povoadas pela população em situação de rua, inclusive algumas, como a Sé e a República, alojam enormes tendas de acolhimento da própria prefeitura. Voltamos para o mapa da fome e a miséria está escancarada nos espaços públicos onde a Virada acontecia.

Com a pandemia, o tímido processo de reabilitação do centro foi revertido, o comércio está enfraquecido, as ruas, sujas, e o otimismo dos anos em que a Virada esteve no auge (2005-2016) desapareceu, dando lugar ao clima de confronto e ódio que tomou conta da sociedade. Nesse ambiente explosivo, os confrontos e arrastões da noite passada eram esperados, mesmo com revista policial.

O ciclo da Virada Cultural tal como foi concebida está encerrado. Um festival cultural em um espaço confinado, ainda que público e gratuito, assim como show de artistas populares em palcos na periferia e em equipamentos culturais, é uma iniciativa necessária, mas está longe do caráter estratégico e renovador que o evento teve no passado.

Uma refiguração da Virada Cultural é indispensável para retomar a relação entre a cultura e a cidade, em um processo de reabilitação da área central que enfrente problemas estruturais da região.

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