Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nina Horta

O jornais só falam de comida

Cai meu queixo ao ver como pode ser articulado e inteligente um rapaz que colhe açaí nos confins

Nina Horta

É muito raro, nem nos dedos da mão posso contar os emails malcriados que recebi por falar em comida, em café com bolo, em casa e terreiro.

Na maioria das vezes, me tornei amiga dos inimigos com uma conversinha, explicando que o jornal tem seções e a minha é de crônica de comida, muito difícil conseguir falar e reclamar da última bala perdida, a não ser que seja bala de coco.

Estou falando de barriga cheia, sério, quase tudo tem a ver com comida. É que os jornais, para disfarçar, inventam nomes para as variadas seções. Vejam se não é verdade.

Olhem as notícias do mesmo dia: ajuda humanitária chega a enclave sírio; dois bandidos assaltam uma lanchonete no Leblon; foram envenenados em Salisbury um espião russo e sua filha com um agente tóxico que ataca o sistema nervoso; frangos com salmonela; a Pepsico está recolhendo produtos que não indicavam que continham glúten; vai ser construído um terminal de trigo na zona portuária; garçonete muda de profissão e passa a tratar macacos; aula de comida africana acontece em Pinheiros. E assim vai.

Sementes de café no chão em lavoura no Espírito Santo
Sementes de café no chão em lavoura no Espírito Santo - Marcelo Justo/Folhapress

Alguém tem que fingir que o mundo não é só comida, é preciso falar em filmes cômicos, em livros bem escritos, em mulheres bonitas, em programas de TV, não tem jeito, para mim sobrou o canudinho recheado com doce de leite. 

Pensam que não sinto vergonha de estar falando em comida, numa galinha assada, num torresminho com feijão, quando tem gente passando fome? De vez em quando dá para fazer uma crônica com os destemperos do Brasil, mas na maior parte do tempo há que se disfarçar numa coluna de entretenimento.

A última crítica que levei por falar em amenidades nem respondi, achei injusta. Fiz uma mesa de festa. A toalha era muito antiga, feita à mão pela tataravó de alguém, quando digo feita à mão quero dizer tecida, como um pano de saco caprichado.

Sobre ela, três panelas de ferro daquelas que encontramos a três por dois no interior, e os pratos eram de vidro branco do supermercado. Um galho de bambu enfeitava tudo. É preciso ter um pouco de sensibilidade e ver que com muito pouco ou quase nada se pode --aliás, é com muita simplicidade que é mais fácil criar beleza. E criar beleza é preciso.

E não é pra me gabar, mas posso fazer a mesma mesa com cuias, dessas que dão nas árvores, e com latas brilhantes, de banha, de biscoito Nestlé (esse é um assunto político, dizem que a gordura dos muito pobres vem da dieta de Nestlé, mas é para outra seção)!

E quase choro com essas notícias de que o Brasil vai levar 300 anos para ficar inteligente como outras nações. Mentira, juro que é mentira. Enquanto leio, a TV está sempre ligada, e de vez em quando paro num canal rural ou em entrevistas de rua.

E, cai meu queixo ao ver como pode ser articulado e inteligente um rapaz que colhe açaí nos confins, uma mulher que tece redes para pesca. Hoje mesmo, o Globo Rural mostrou um canto do Brasil que vivia de camarão pescado todo dia e o bicho estava em extinção.

Não sabiam o que fazer até que esteve lá a Embrapa e inventou um tipo de rede em que os camarões entravam e não conseguiam mais sair. Os grandes ficavam presos e os pequeninos saiam pelas brechas.

E acabou-se o perigo da extinção, e as mulheres se sentiram felizes pois aprenderam a pescar e a fazer as redes e ainda inventaram outra, mais eficiente que a primeira. E diziam aquilo que todas dizem: “agora não dependemos mais dos homens, já podemos fazer nosso dinheiro”, e riam de uma orelha à outra.

E, no mesmo programa, um senhor se queixava do governo, se sentia brasileiro lá num canto do Piauí, mas numa bolha esquecida, impedido de sair daquele canto pois começaram a construir uma ponte e não acabaram por falta de dinheiro.

O que mais me impressionou foi ele estar no Piauí e na bolha e ter um linguajar culto, inteligente, sensato. Deve ter bastado uma boa professora na infância. E as peripécias para conseguirem comida e água!

Vou continuar conversando sobre comidas típicas, sobre o nosso gosto, tudo que eu quiser falar, pois no fundo do coração, sei que um empurrãozinho que seja bota esse povo pra frente. Muita gente boa e inteligente, e criançada esperta nessas bolhas, só esperando que olhem um minuto para eles.

Podemos levar 300 anos para empatar com a Islândia, mas alguém está preocupado em empatar com a Islândia? Basta sermos felizes e livres, cabeça boa, peixe pra pescar, sementes para plantar, tudo que nos ensinarem vamos aprender, até a fazer bolo em camadas e creme brûlée.

Confiança, não deixemos cair as armas, não vamos desistir, o bom Brasil está ali na esquina. É que ainda não aprendemos a construir boas redes que prendam os graúdos e deixem soltos os camarõezinhos espertos. Mas, pelo jeito, estamos já a aprender.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.